terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Coração de lutador, parte 1


   Eu ainda posso lutar, doutor.
As luzes eram ofuscantes dentro do octógono. Nada de admirar-se, até porque ali era o ponto de convergência de todos os holofotes. O lutador não conseguia manter-se imóvel, e no fundo de sua mente o médico procurava alguma distinção conclusiva entre inquietude provocada por adrenalina e convulsões causadas por trauma; seu raciocínio acelerado não conseguia, entretanto, harmonizar diagnóstico.
Chamado por um colega seu para substituí-lo naquele evento de MMA, o médico era verdadeiramente de primeira viagem naquele mundo dos diagnósticos improvisados. A bem da verdade pensava não se tratar aquilo mais do que palpite abalizado. Como examinar um paciente quando ele está saltitando na sua frente, falhando em ficar parado ou sequer olhar para alguma direção que não a do seu oponente? O médico estava nervoso, mas tentava se manter objetivo; infinitas pessoas lhe assistiam naquele momento. Estava numa arena com uma plateia de mais de 30.000 pessoas, fora o meio milhão que acompanha em casa, e, apesar de ser um médico conceituado, estava acostumado a atender dentro da tranquilidade de seu consultório. Além disso, aquele era o primeiro evento de lutas que assistia na vida.
Apesar da popularidade que aquele tipo de evento viera ganhando nos últimos anos, o médico nunca se sentara para assistir nada a respeito. Todo mês, uma ou duas edições eram transmitidas, mas ele nunca assistia. No seu conceito, aquilo não era mais do que violência gratuita; uma espécie de pão-e-circo para os mais descompromissados. Ele não concebia achar conteúdo em um esporte que coloca dois seres humanos para se digladiar até que um deles falhe em apresentar reação;  seja por meio das concussões infligidas por golpes sobre-humanos, seja por meio dos estrangulamentos, das torções... Barbaridade. Não sem um pouco de desgosto aceitara preencher a vaga de seu amigo, mas lhe devia um grande favor e realmente não havia meio de driblar o pedido. Infelizmente, logo na segunda luta da noite um dos lutadores foi vitimado por uma quantidade satânica de cotoveladas e, apesar de eventualmente se desvencilhar da investida do adversário, uma pequena fonte de sangue agora fluía de seu supercílio esquerdo, enquanto um inchaço enorme vinha à luz na mesma lateral de seu rosto. Desnecessário dizer que logo o árbitro suspendeu a luta e chamou o médico para avaliar a condição do lutador para prosseguir.
Com passos rápidos o médico subiu os degraus para dentro do octógono e procedeu à avaliação do paciente. Agora, de perto, as coisas pareciam ainda mais feias do que ele  imaginava. O inchaço formara uma esfera de uns 5 cm de diâmetro, enquanto o sangue fluía farto do corte; com a somatória das duas coisas, resultava que o lutador não conseguia enxergar com o olho esquerdo. O médico olhou para o cronômetro do combate, tomando ciência de que estavam no final do segundo round e penúltimo round. Faltavam aproximadamente 6 minutos para o final da luta, e o médico achava que aquelas lacerações impossibilitavam o combate de continuar.
   Eu ainda posso lutar, doutor- sussurrou o lutador.
O médico estava terminando de examinar o corte no supercílio e, em decorrência da sua proximidade com o lutador, ele sabia que nem o câmera man atrás deles conseguira ouvir aquilo. Discretamente o médico olhou o telão da arena, onde eram visíveis suas costas e um pouco da face desfigurada do lutador. Voltou suas atenções ao paciente.
   Vou ter que parar essa luta, senhor. - retrucou o médico. Suspeitava de que aquele inchaço era fruto de uma fratura no osso orbital, o que era sério. Mas assim que a última sílaba escapou por entre seus lábios, o lutador, num ato reflexo, deu um passo à frente, exprimindo voluntariedade.
   Não! Doutor, eu posso lutar! - ele falou, desesperado de tal forma que o médico se viu pego de surpresa.
   Desculpe-me senhor, mas não posso deixar essa luta continuar. Um pedaço do seu supercílio está pendendo do seu rosto e eu creio que haja uma fratura no seu crânio; eu estaria maluco se deixasse essa luta prosseguir- respondeu o médico, tentando exprimir compaixão sincera, ainda que taxatividade. No momento em que ia dar um passo para trás, o lutador segurou seu ombro.
   Doutor, por favor! Não pare a luta, eu vou vencer!- ele falou. Não estivesse seu olho esquerdo oculto pelos ferimentos, o médico sabia que um olhar de súplica estaria formado.
O médico olhou rapidamente o adversário do seu paciente. Ambos eram homens grandes e musculosos, mas o oponente era um brutamonte consagrado nos grandes circuitos, com uma quantidade impressionante de vitórias em seu cartel e que rumava à disputa de cinturão. Seu paciente, por outro lado, era um jovem bem mais inexperiente que fora convidado para participar do evento em substituição a outro lutador que se contundira um mês antes da luta. Era a sua primeira vez dentro da grande promoção, e se perdesse seria muito bem sua última. Isto, ao menos, foi o que lhe disseram momentos antes de ser convocado para avaliá-lo.
   Acredite, filho, é para o seu próprio bem. Se eu não parar esta luta agora, posso prejudicar sua vida para sempre.- argumentou o doutor.
   Doutor, se o senhor parar essa luta eu nunca mais terei a chance de trabalhar nesta promoção, e tudo para o que me esforço todos os dias terá sido em vão! – respondeu o lutador, automaticamente- Se o senhor parar essa luta, minha vida será prejudicada para sempre com certeza! Por favor, doutor, eu tenho dois filhos pequenos para quem sou tudo no mundo, por favor, se eu fracassar hoje, não só eu não terei como pagar sequer a condução deles para a escola como também jamais me perdoarei por não ter feito tudo o que estava ao meu alcance!
De repente, o médico sentiu seu coração pesar. Olhando novamente o adversário de seu paciente. Ele parecia inteiro, parecia bem. Sorria e flertava com o público enquanto o médico se preocupava com a saúde de seu paciente. Leigo no esporte como fosse, não parecia ao médico haver jeito de o jovem vencer a luta.
   Doutor, o senhor não sabe por quanta coisa já passei para estar aqui hoje.- o lutador de repente tentou adotar um ar mais comedido, buscando parecer mais razoável, embora fosse incapaz de conter as suas emoções profundas - Eu amo lutar. Eu amo com paixão, paixão que até uma ex-esposa já me custou. Mas meus filhos não me deixaram, doutor. Eles me acham herói, doutor, mas o senhor sabe que não existem heróis que precisem equilibrar o papel de pai, 2 empregos de salário-mínimo e o treino de 3 artes maciais.  Mas eu tenho certeza, doutor, um homem bem sucedido como o senhor, eu tenho certeza que o senhor sabe o que é precisar vencer na vida. Eu tenho certeza que o senhor sabe o que é ralar e ter que colocar tudo na mesa. Eu sei, doutor, eu sei que o senhor me entende. Esses ferimentos, eles podem me matar, doutor, mas só se por causa deles eu não puder mais lutar. Só assim eles podem me matar!- concluiu o lutador, e o médico não sabia se eram lágrimas em seus olhos ou apenas o brilho geral de suor que lhe permeava o corpo.
   Mas como você pretende vencer, essa luta? Está terminando o segundo round e o outro cara parece que acabou de entrar no octógono. Você, bem, parece que você foi atropelado por um caminhão... - inquiriu o médico, descrente.
Botando a mão sobre o peito esquerdo, o lutador respondeu:
   Coração, doutor. Homens são definidos pelas adversidades que encontram, e eu tenho certeza de que as minhas me fazem maior do que o meu oponente. E eu posso lhe mostrar, o senhor só precisa permitir.
Subitamente, o árbitro apareceu ao lado dos dois.
   E então, doutor? - perguntou ele.
De repente, o médico lembrou que todos os olhos do mundo estavam em sua pessoa. O árbitro, o lutador, a câmera, os fãs, todos aguardavam pelo seu parecer.
Os seus olhos caíram na mão que o seu paciente ainda tinha sobre o peito, e de repente ele se viu limpando o sangue da face dele e declarando:
   Isso não é nada, árbitro. Esse daqui luta por mais 5 rounds.
As sobrancelhas do árbitro, em espanto, esticaram-se até quase a nuca, e ele perguntou se o médico estava certo do parecer. Contrariando seu próprio bom-senso, o médico forneceu sua palavra.


Sentado em seu lugar de volta, o médico assistiu o restante da luta na ponta da cadeira. Honestamente, arrependera-se da própria decisão no segundo em que saíra do octógono; mas procurava concatenar o peso em sua consciência numa torcida introvertida pelo paciente. Assistiu com tristeza enquanto, pelo restante do minuto final do segundo round, o jovem lutador retomou a surra nos exatos termos de antes da intervenção do árbitro.
Durante o minuto entre-rounds, sentou-se ao seu lado o homem que o médico reconheceu como o Dono do evento. Embora estivesse trabalhando para ele, nunca tivera a oportunidade de falar-lhe diretamente.
   Aquele sujeito não deveria ter voltado para luta- falou o Dono, sem que houvesse sequer algum cumprimento. Apesar da falta de educação, o médico manteve-se profissional.
   Não foi o que a minha análise mostrou- respondeu.
   Foda-se sua análise. Você impediu que o meu lutador conseguisse uma vitória por parada médica e agora eu estou achando que ele vai conseguir uma merda de uma vitória por decisão dos juízes. - falou o Dono.- Se isso acontecer, o meu lutador ainda vai precisar de mais uma ou duas lutas para convencer o público a querer vê-lo enfrentar o campeão. Sabe o quanto eu deixo de lucrar assim? Esse esporte precisa de estrelas, doutor.
O médico não conseguia acreditar na grosseria do homem. Permaneceu calado, no entanto, apenas observando.
   Só vim aqui para lhe avisar, doutor, que se o senhor não aproveitar esse minuto entre-rounds para parar a luta, o rapaz vai perder de qualquer forma E eu ainda vou processá-lo pelos danos que ELE sofrer, respaldado juridicamente pela sua negligência médica.- os olhos cruéis do homem queimavam o rosto do médico, ameaça que eram.
Tentando manter a calma, o médico procurou usar todo o seu sangue frio para mentir:
   Minha decisão médica satisfaz todos os parâmetros de análise exigidos pela comissão médica do esporte, e ela é inatacável. – disse ele, ao passo que imaginava em sua cabeça a nota que os membros da comissão conseguiriam numa competição de salto a distância com o pulo que devem ter dado de suas cadeiras ao ver as condições do lutador que ele deixara prosseguir lutando. - Não posso impedi-lo de me processar, mas posso com certeza vencê-lo no tribunal se o fizer.
Por um momento, os dois se olharam. O médico não estava certo se seu blefe fora bem sucedido, mas o dono do evento com certeza parecia menos agressivo.
   Agora, por favor, se o senhor me der licença, pretendo apreciar o restante da luta. E prepare-se para uma surpresa nesse round final- concluiu o médico, lançando uma previsão ousada, apesar de ser totalmente ignorante no assunto dos combates. O homem pareceu se enfurecer profundamente com aquele pequeno soco argumentativo.
   Vê-lo-ei nos tribunais, doutor.- ameaçou o homem, enquanto se levantava.- Tudo isso porque foi com a cara de um lutadorzinho-escada... - saiu então, resmungando.

O terceiro round começou e o lutador brutamonte foi, à passos largos, em direção ao lutador jovem, mais faminto do que nunca pela vitória. O médico sentiu seu coração acelerar no peito. O seu paciente tentou acertar um soco potente no lutador no favorito, mas com os reflexos de um gato, o alvo esgueirou-se por baixo do soco e, fazendo as entranhas do médico decolarem em seu abdome, levantou-se com um gancho de esquerda que acertou o queixo do jovem e uma martelada de direita que o jogou ao chão sem cerimônias, quase apagado. A plateia levantou-se de seus lugares e clamou insanamente. O árbitro correu para perto, não parando a luta por muito pouco. O médico percebeu que fora por causa do olho esquerdo fechado que o lutador fora incapaz  de ver o golpe chegando, e aquilo o sufocou por dentro.
Para finalizar a luta, o lutador mais experiente correu em direção à cabeça do oponente, pronto para acertar mais socos e conseguir um nocaute. Ao que se aproximou, o médico ergueu as próprias mãos numa atitude defensiva automática, esforçando-se para assistir o que viria em seguida.
De repente, o lutador estirado no chão esticou uma mão, segurando a canela do oponente, e girou sobre o próprio quadril para tentar o que o médico julgou ser uma rasteira. Surpreendentemente, o que era uma rasteira tornou-se um complexo golpe de jiu jitsu que , criando uma alavanca extremamente dolorosa, fez com que o lutador mais bruto caísse ao chão fazendo uma careta de dor impressionante; pouco depois submeteu a vitória. O árbitro separou os adversários e levantou a mão do jovem lutador, que apesar da horrível contusão no rosto, vibrava como se fosse o homem mais feliz do mundo.
Logo subiu ao octógono a equipe de reportagens do evento, que rapidamente buscou entrevista com o vencedor. Subiram também os dois filhos de que o jovem lutador lhe falara, que abraçaram o pai às lágrimas, não tardando este a verter suas próprias. Durante a entrevista, o vencedor chamou seu oponente derrotado e abraçou-o longamente, ambos parabenizando-se pelo combate espetacular. Resquícios de ódio não havia.
Posteriormente, ao descer pelos degraus do octógono, ainda abraçado aos filhos, o lutador deteve-se por um momento para dirigir-se ao médico e apertar-lhe as mãos.
   Coração, doutor! - falou, emocionando-se novamente.
   Coração de lutador – completou lhe o médico, sorridente.
    
   Antes, o médico via a grade que circula o octógono como as grades de um zoológico, onde se expunha ao público o lado mais animalesco do ser humano, numa tentativa de unicamente lhe saciar o desejo por sanguinolência. Não mais. Após aquela luta, e todas as outras que se seguiram no decorrer da noite, ele aprendeu que a grade estava ali não para afastar o público da violência, mas os lutadores de todo o resto.
Advogados possuem escritórios, médicos possuem consultórios, artistas tem o palco e lutares têm a grade. É dentro dela que eles se apresentam, é lá que eles mostram o fruto de sua paixão e a extensão de sua dedicação. Ao longe, a plateia pode assistir-lhes para simplesmente satisfazer sua própria animalidade, ou pode assistir-lhes para apreciar a arte. A disputa, o combate, a determinação, a superação, a disciplina, a estratégia... O médico crucificava o esporte por não crer que houvesse conteúdo. Mas ele então o achou, e ele o achou como um homem que bate uma picareta no chão do deserto e descobre uma fonte rica de petróleo. É belo.
Violento?
A violência só existe quando os homens não devem lutar, e ainda assim procedem ao embate. Quando dois homens vivem a vida para disputar esse esporte, e se dedicam e se preparam todos os dias, e entram na arena com chances similares de vitória, não se trata de violência. Trata-se de disputa, de grandiosa disputa. O esporte é agressivo, mas violento? Lembrando-se do dono do evento tentando assustá-lo, e da ideia que o dono do evento tinha de que o estaria jogando um lutador-escada para ser assassinado pelo mais experiente, o médico percebeu que era inegável que de fato havia certa violência no esporte: colocar uma força imparável contra outra que se sabe não pertencer à sua frente; é violência. Mas não foi o que aconteceu naquela noite. 

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