sábado, 28 de setembro de 2013

1.1. Angie


Era um dia quente em meados de novembro. Angie  apertava com força o cabo de sua grossa espada de aço – embainhada -  com uma das mãos, enquanto com a outra afastava seus cabelos castanhos ensopados de suor da testa. Seu olhar se perdia em algum ponto elevado. Ela usava uma completa armadura de ferro, pesada e resistente, que infelizmente fazia o calor natural crescer em progressão alarmante. Do jeito que estava suando, Angie começava a temer uma desidratação.
- E então, capitã? – perguntou Howard, seu segundo em comando. Howard era um homem com sobrancelhas grossas, pele morena queimada de sol e com um semblante que fazia extrapolarem os palpites acerca de sua idade. Howard estava, igual sua capitã, trajando uma armadura completa, só que lhe faltava a peça do ombro direito. À frente deles, uma grande e íngreme montanha erguia-se até onde a visão da pequena infantaria liderada por Angie conseguia escalar.
Boatos haviam se espalhado pela alta sociedade do reino de que os (poucos) remanescentes da família Morcerick poderiam estar usando a montanha como esconderijo. Motivados pelo sentimento de vingança, a alta corte pressionou o rei Fidelis para que ele mandasse uma infantaria para enterrar até o último membro da família Morcerick, responsável por uma grande traição na década anterior que culminara com uma tentativa fracassada de assassinato do rei, mas que por vias indiretas provocou a morte de seu filho.
Angie ainda tremia quando voltava à sua memória  aquele sentimento que lhe preenchera o peito quando  descobriu a morte do jovem príncipe. Retornava às terras do castelo após um excelente dia de caça para descobrir seu o corpo gelado de seu irmão desfalecido em seus aposentos. Ela gritara e gritara, por meio das lágrimas, até que alguém finalmente apareceu e a afastou do corpo frio. Seu pai, o rei, veio a passos pesados pelos corredores e entrou no quarto acompanhado por 20 soldados armados. Ele olhou impassível o cadáver, e depois seus olhos se concentraram na filha remanescente. Ele tomou sua mão e murmurou palavras doces para que ela ouvisse. Em seguida, rapidamente tomou o caminho da saída do quarto. Angie sentiu o próprio coração cair dentro de sua caixa torácica, olhando do corpo do irmão para o pai que se afastava. Levantou-se num impulso e gritou:
- És mais frio que o corpo agora eternamente imóvel de teu filho, pai! – O rei e sua comitiva estancaram, mas ele não virou o rosto para encarar a filha. Os outros servos presentes nos aposentos a olhavam com tanta pena em suas faces que ela não conseguiu se conter, deixando fluir a necessidade de se expor ainda mais. “O teu filho jaz no chão de rocha nua trajando nada mais que os robes os mais caseiros, dentro da casa que é nossa e dentro do cerne de nossa segurança, claramente vitimado por aqueles que não desejam o teu bem, pai, e tu dás as costas e vais embora? Não tens coração? Não sequer te aproximas  do corpo uma última vez? Que pai é esse?”- ela lutava para terminar as sentenças, pois estava agora aos prantos.
O rei virou o rosto apenas para observá-la, mas logo em seguida deu-lhe as costas, entrou pelo corredor e sumiu de vista, acompanhado de perto pela sua guarda real.
- Devo esperar eu o mesmo tratamento se algum dia encontrarem meus restos expostos e dilacerados n’alguma trincheira afundada enquanto travamos os combates de nosso reino? É isso pai? É ISSO? – ela gritava, e por um momento tentou correr pela porta para alcançar o pai, para fazer sabe-se-lá-o-quê, mas rapidamente 3 soldados atrapalharam seu intento.
Quando levaram o cadáver para a ala hospitalar do castelo, sangue começou a vazar por todos os orifícios do seu corpo. Angie assistiu horrorizada enquanto os robes brancos do irmão iam mudando de cor ao se misturarem com o escarlate de seu sangue. Naquela noite, Angie fugiu do castelo e passou os dois dias e duas noites seguintes perambulando pelas terras próximas, matando animais selvagens e se alimentando apenas do que conseguia manufaturar. Durante o tempo todo, não disse palavra.
Eventualmente vir-se-ia a saber que a causa da morte fora envenenamento; um veneno tão forte e aplicado em tanta quantidade no alimento que após matar o jovem príncipe, começara a derreter seus intestinos. O alimento envenenado havia sido uma cesta de sortes dada por um terceiro comandado pela família Morcerick; isto não foi, entretanto, descoberto com facilidade. Um ano de inquérito se seguiu a essa noite, e houve várias prisões. Infelizmente para a família Morcerick, Angie supervisionara aquele inquérito como se fosse a última coisa que faria. Ela própria sofrera um atentado similar, mas mal sabiam o perpetrantes do atentado que Angie agora só comia aquilo cuja produção e preparo ela supervisionava; que, por sua vez, muito frequentemente consistia daquilo que ela mesma caçava. Um servo acabou falecendo após furtar a tal cesta, e enquanto os guardas reais conduziam Angie pelas vielas da cidade-estado, ela já ruminava suspeitas que apenas se confirmaram quando seus olhos encontraram o corpo imóvel do servo na poça rubra de sangue e colcha que se tornara sua cama. A mulher do rapaz chorava aos soluços enquanto Angie observava a cena, sentindo uma chama ferver seu interior.
Dessa vez, entretanto, Angie estava preparada. Ela tinha seus próprios informantes circulando pelo castelo, infiltrados entre os servos e prontos para conduzir qualquer situação suspeita de forma profissional, atenta e com tanta naturalidade que, após o atentado fracassado, Angie não precisou mais do que conversar com seu informante-chefe para obter uma reconstituição fiel da proveniência da cesta e de quem a havia trazido. A partir daí, o inquérito não tardou mais do que algumas semanas até apontar Matteus Morcerick, o filho mais velho da família, como principal responsável pelo envio dos alimentos envenenados. Com pouco tempo ela conseguiu a ordem real e encaminhou-se com a guarda até a residência da família, onde ela coordenou uma grande matança. As crianças foram separadas de seus pais e enviadas para longe do reino, enquanto os adultos foram esquartejados e suas cabeças postas à mostra nos portões da cidade.
Num contorno triste do destino, no dia em que Angie carregara as ordens do pai, alguns membros da família estavam ausentes em viagem; um deles, claro, era Matteus Morcerick. Desnecessário dizer que desse dia em diante, nunca mais se ouviu falar de nenhum deles.
Até recentemente.
Angie olhava para o cume da montanha, imaginando como que conseguiria subir aquilo. Era muito íngreme; uma pessoa normal jamais conseguiria. Talvez alguém mais treinado e com menos equipamento de guerra, conseguisse; mas ninguém na sua infantaria obteria sucesso.
O que Angie precisava era de... magia. E ela sabia exatamente onde conseguir.
De repente, o celular de Angie começou a tocar, interrompendo a música que saía de seus fones de ouvido.

...

Era seu pai, perguntando onde diabos ela estava e por que ela não tinha aparecido na aula de francês. Ela explicou que tinha finalmente descoberto o endereço do idiota que havia envenenado a ração de Toddie, e que o sujeito morava num condomínio luxuoso no centro da cidade.
- Ah, Ângela... Eu te disse para esquecer isso...- disse seu pai, com um pouco de tristeza na voz. “Eu vou aí te pegar”.
Mas Angie não lhe deu atenção. Logo após a ligação ser desligada, a música voltou a sair pelos seus fones de ouvido e ela já estava na armadura novamente, olhando para o prédio e imaginando como diabos faria para entrar.
Afinal, não era surpresa nenhuma que o rei Fidelis, após anos de aguda paranóia, em toda a sua precaução exagerada, houvesse proibido quaisquer atos de perseguição aos Morcerick. Angie estava ali por conta própria, com os poucos homens que decidiram lutar por sua causa.

...

Entrando no carro, o pai de Angie deu a ignição enquanto murmurava impropérios. Desde que o cachorro de sua filha havia morrido, ela estava em polvorosa. Não que a imaginação de sua filha necessitasse de muito estímulo para abrir asas e decolar, mas deste então a garota ficara em estado quase catatônico. Ia para a escola, voltava, almoçava rapidamente e logo trancava-se no quarto para jogar vídeo games, assistir suas séries, ler seus livros e ouvir sua música. Se em algum momento saía, estava com fones de ouvido e olhos tão distantes da realidade que o resto da família era capaz de passar despercebido. Aliás, a última vez que ela tivera algum contato real com o pai foi para dar-lhe um carão por não se importar mais com o falecimento do animal.
A situação só fez piorar quando, alguns dias depois, Ângela viu acontecer o mesmo com o cachorro do vizinho do outro lado da rua. Aí que a jovem ficou ainda mais reservada, não saindo do quarto senão para ir à escola e a seus cursos.
Aliás, ele não conseguia imaginar qual seria a reação da filha se ela descobrisse quais eventos realmente levaram ao falecimento dos pobres animais.