Era um dia
quente em meados de novembro. Angie apertava
com força o cabo de sua grossa espada de aço – embainhada - com uma das mãos, enquanto com a outra
afastava seus cabelos castanhos ensopados de suor da testa. Seu olhar se perdia
em algum ponto elevado. Ela usava uma completa armadura de ferro, pesada e
resistente, que infelizmente fazia o calor natural crescer em progressão alarmante.
Do jeito que estava suando, Angie começava a temer uma desidratação.
- E então,
capitã? – perguntou Howard, seu segundo em comando. Howard era um homem com sobrancelhas
grossas, pele morena queimada de sol e com um semblante que fazia extrapolarem
os palpites acerca de sua idade. Howard estava, igual sua capitã, trajando uma
armadura completa, só que lhe faltava a peça do ombro direito. À frente deles, uma
grande e íngreme montanha erguia-se até onde a visão da pequena infantaria liderada
por Angie conseguia escalar.
Boatos haviam
se espalhado pela alta sociedade do reino de que os (poucos) remanescentes da
família Morcerick poderiam estar usando a montanha como esconderijo. Motivados pelo
sentimento de vingança, a alta corte pressionou o rei Fidelis para que ele
mandasse uma infantaria para enterrar até o último membro da família Morcerick,
responsável por uma grande traição na década anterior que culminara com uma
tentativa fracassada de assassinato do rei, mas que por vias indiretas provocou
a morte de seu filho.
Angie ainda
tremia quando voltava à sua memória aquele
sentimento que lhe preenchera o peito quando descobriu a morte do jovem príncipe. Retornava
às terras do castelo após um excelente dia de caça para descobrir seu o corpo
gelado de seu irmão desfalecido em seus aposentos. Ela gritara e gritara, por
meio das lágrimas, até que alguém finalmente apareceu e a afastou do corpo
frio. Seu pai, o rei, veio a passos pesados pelos corredores e entrou no quarto
acompanhado por 20 soldados armados. Ele olhou impassível o cadáver, e depois
seus olhos se concentraram na filha remanescente. Ele tomou sua mão e murmurou
palavras doces para que ela ouvisse. Em seguida, rapidamente tomou o caminho da
saída do quarto. Angie sentiu o próprio coração cair dentro de sua caixa
torácica, olhando do corpo do irmão para o pai que se afastava. Levantou-se num
impulso e gritou:
- És mais frio
que o corpo agora eternamente imóvel de teu filho, pai! – O rei e sua comitiva estancaram,
mas ele não virou o rosto para encarar a filha. Os outros servos presentes nos
aposentos a olhavam com tanta pena em suas faces que ela não conseguiu se
conter, deixando fluir a necessidade de se expor ainda mais. “O teu filho jaz
no chão de rocha nua trajando nada mais que os robes os mais caseiros, dentro
da casa que é nossa e dentro do cerne de nossa segurança, claramente vitimado
por aqueles que não desejam o teu bem, pai, e tu dás as costas e vais embora?
Não tens coração? Não sequer te aproximas do corpo uma última vez? Que pai é esse?”- ela
lutava para terminar as sentenças, pois estava agora aos prantos.
O rei virou o
rosto apenas para observá-la, mas logo em seguida deu-lhe as costas, entrou
pelo corredor e sumiu de vista, acompanhado de perto pela sua guarda real.
- Devo esperar
eu o mesmo tratamento se algum dia encontrarem meus restos expostos e
dilacerados n’alguma trincheira afundada enquanto travamos os combates de nosso
reino? É isso pai? É ISSO? – ela gritava, e por um momento tentou correr pela
porta para alcançar o pai, para fazer sabe-se-lá-o-quê, mas rapidamente 3
soldados atrapalharam seu intento.
Quando levaram
o cadáver para a ala hospitalar do castelo, sangue começou a vazar por todos os
orifícios do seu corpo. Angie assistiu horrorizada enquanto os robes brancos do
irmão iam mudando de cor ao se misturarem com o escarlate de seu sangue.
Naquela noite, Angie fugiu do castelo e passou os dois dias e duas noites seguintes
perambulando pelas terras próximas, matando animais selvagens e se alimentando
apenas do que conseguia manufaturar. Durante o tempo todo, não disse palavra.
Eventualmente
vir-se-ia a saber que a causa da morte fora envenenamento; um veneno tão forte
e aplicado em tanta quantidade no alimento que após matar o jovem príncipe, começara
a derreter seus intestinos. O alimento envenenado havia sido uma cesta de
sortes dada por um terceiro comandado pela família Morcerick; isto não foi, entretanto,
descoberto com facilidade. Um ano de inquérito se seguiu a essa noite, e houve várias
prisões. Infelizmente para a família Morcerick, Angie supervisionara aquele
inquérito como se fosse a última coisa que faria. Ela própria sofrera um
atentado similar, mas mal sabiam o perpetrantes do atentado que Angie agora só
comia aquilo cuja produção e preparo ela supervisionava; que, por sua vez,
muito frequentemente consistia daquilo que ela mesma caçava. Um servo acabou
falecendo após furtar a tal cesta, e enquanto os guardas reais conduziam Angie
pelas vielas da cidade-estado, ela já ruminava suspeitas que apenas se
confirmaram quando seus olhos encontraram o corpo imóvel do servo na poça rubra
de sangue e colcha que se tornara sua cama. A mulher do rapaz chorava aos
soluços enquanto Angie observava a cena, sentindo uma chama ferver seu
interior.
Dessa vez,
entretanto, Angie estava preparada. Ela tinha seus próprios informantes
circulando pelo castelo, infiltrados entre os servos e prontos para conduzir
qualquer situação suspeita de forma profissional, atenta e com tanta
naturalidade que, após o atentado fracassado, Angie não precisou mais do que
conversar com seu informante-chefe para obter uma reconstituição fiel da proveniência
da cesta e de quem a havia trazido. A partir daí, o inquérito não tardou mais
do que algumas semanas até apontar Matteus Morcerick, o filho mais velho da
família, como principal responsável pelo envio dos alimentos envenenados. Com
pouco tempo ela conseguiu a ordem real e encaminhou-se com a guarda até a
residência da família, onde ela coordenou uma grande matança. As crianças foram
separadas de seus pais e enviadas para longe do reino, enquanto os adultos
foram esquartejados e suas cabeças postas à mostra nos portões da cidade.
Num contorno
triste do destino, no dia em que Angie carregara as ordens do pai, alguns
membros da família estavam ausentes em viagem; um deles, claro, era Matteus
Morcerick. Desnecessário dizer que desse dia em diante, nunca mais se ouviu
falar de nenhum deles.
Até
recentemente.
Angie olhava
para o cume da montanha, imaginando como que conseguiria subir aquilo. Era
muito íngreme; uma pessoa normal jamais conseguiria. Talvez alguém mais
treinado e com menos equipamento de guerra, conseguisse; mas ninguém na sua
infantaria obteria sucesso.
O que Angie
precisava era de... magia. E ela sabia exatamente onde conseguir.
De repente, o
celular de Angie começou a tocar, interrompendo a música que saía de seus fones
de ouvido.
...
Era seu pai,
perguntando onde diabos ela estava e por que ela não tinha aparecido na aula de
francês. Ela explicou que tinha finalmente descoberto o endereço do idiota que
havia envenenado a ração de Toddie, e que o sujeito morava num condomínio
luxuoso no centro da cidade.
- Ah, Ângela...
Eu te disse para esquecer isso...- disse seu pai, com um pouco de tristeza na
voz. “Eu vou aí te pegar”.
Mas Angie não lhe deu atenção. Logo após a ligação ser desligada, a música
voltou a sair pelos seus fones de ouvido e ela já estava na armadura novamente,
olhando para o prédio e imaginando como diabos faria para entrar.
Afinal, não era
surpresa nenhuma que o rei Fidelis, após anos de aguda paranóia, em toda a sua precaução exagerada, houvesse
proibido quaisquer atos de perseguição aos Morcerick. Angie estava ali por
conta própria, com os poucos homens que decidiram lutar por sua causa.
...
Entrando no
carro, o pai de Angie deu a ignição enquanto murmurava impropérios. Desde que o
cachorro de sua filha havia morrido, ela estava em polvorosa. Não que a imaginação
de sua filha necessitasse de muito estímulo para abrir asas e decolar, mas
deste então a garota ficara em estado quase catatônico. Ia para a escola,
voltava, almoçava rapidamente e logo trancava-se no quarto para jogar vídeo games,
assistir suas séries, ler seus livros e ouvir sua música. Se em algum momento
saía, estava com fones de ouvido e olhos tão distantes da realidade que o resto
da família era capaz de passar despercebido. Aliás, a última vez que ela tivera
algum contato real com o pai foi para dar-lhe um carão por não se importar mais
com o falecimento do animal.
A situação só
fez piorar quando, alguns dias depois, Ângela viu acontecer o mesmo com o
cachorro do vizinho do outro lado da rua. Aí que a jovem ficou ainda mais
reservada, não saindo do quarto senão para ir à escola e a seus cursos.
Aliás, ele não conseguia
imaginar qual seria a reação da filha se ela descobrisse quais eventos realmente
levaram ao falecimento dos pobres animais.