terça-feira, 28 de agosto de 2012

O matrimônio de Dona Alice



É uso entre as senhoras concordarem que Dona Alice foi uma mulher "que não passou pela vida". Hoje, entre uma balançada e a próxima em suas cadeiras barulhentas, as velhas amigas não conseguem senão escrutinar a vida que a outra levou; leva, é bem verdade, porque ainda não morreu.
                Está próximo, elas concordam. O fim. As pernas inchadas, a pouca vitalidade que os anos deixaram. Parece que a diabetes atacou de novo; agora não deve estar muito longe. Ela nunca foi mulher de visão, mas já faz anos que sequer enxergava qualquer coisa. Vivia trancada na sua casa, que era localizada na parte antiga do centro da cidade. Não era a parte do centro que costuma ser nobre, não; aquela casa, onde ela sempre morou, nunca foi grande coisa. Nem o valor imobiliário o tempo fez estimar.
                Um cheiro de mofo que vencia o esforço dos desodorantes baratos, as velhas torciam o nariz à mera lembrança. Os retratos embolorecidos. As janelas, imundas por fora e sujas por dentro. A luz que entrava era como os fiapos que se veriam no chão de uma cela. A televisão velha só gerava cores feias. Os programas exibidos deveriam servir tanto como algemas para a mente como ópio para o coração. As prateleiras eram repletas de itens que meramente sobreviveram ao passado. Itens que provavelmente evocavam pouco ou nenhum sentimento à dona; quando não deviam lhe trazer asco.
                Os filhos saíram cedo de casa. O primogênito apaixonou-se pelo pó e pela seringa. O conceito de endereço fixo ele não entendia mais, e tanto sabe a vizinhança sobre seus vícios que pouco confessa saber sobre seu paradeiro. Diz-se que ele foi mutilado pelo mundo, uma furada por vez. Mas da caçula é que mais se fala: virou porcelana fendida. Chorou pela mãe enquanto pôde, e o dia em que as lágrimas secaram foi também o dia em que ela se despediu. Claro, o cumprimento da despedida aqui é o eufemismo que todos usaram para não terem de entrar no mérito das joias que a moça furtou da mãe. Machuca mais ainda saber que, tivesse a pequena lhes pedido, a mãe tola as teria dado. Preferiu, outrossim, toma-las por meio vil, atirando a mãe em uma tristeza da qual nunca mais saiu. Mas o seu agir foi apenas a vassourada que levou os fragmentos partidos do coração da mãe para baixo do tapete.
                É triste, sabe? Depois desse dia, Dona Alice dizia que de suas pedrinhas preciosas, nenhuma ficou.
                Ninguém censurava Dona Alice por não ter pedido pensão ao fim do casamento. Quando se pensava em levantar essa hipótese, lembravam que alguém tinha levado essa crítica a ela. Quem foi, ninguém se recorda, mas a resposta de Dona Alice é fresca na memória de todos. Ela disse, A vida toda passei sem que dinheiro visitasse minhas mãos. Por que, à esta altura, quereria eu mudar essa realidade? Conformada, as pessoas concordavam. Concordavam à meia voz. Porque a próxima parte da conversa era a mais carregada.
                   Foi tudo culpa do marido.
                O sujeito era um grosseirão. Arrogante tamanho que seu ego por pouco não tirou CPF para si próprio. Um pobre que além de tudo era esnobe. A profissão (qual era, ninguém lembrava ao certo) lhe fazia sentir como se rendesse milhões, ao invés dos trocados para pagar as contas que realmente chegavam à sua conta. Isso não o impedia de ser o coronel que seu jeito de andar fazia crer. Esbarrava nas pessoas, cuspia na rua. Às vezes assobiava para moças mais jovens com Dona Alice do lado, obrigando-a a fazer que não via.
                O marido era cruel e mesquinho. Nunca ligou para a educação dos filhos; talvez sempre pretendesse abandoná-los. Batia-lhes quando as pancadas que dava em Dona Alice não lhe satisfaziam. Certa vez  mandou o mais velho, quando este ainda era uma criança, lhe trazer um pacote de cigarros, mas ao invés de lhe dar dinheiro, disse que o dono da mercearia não prestava atenção nas crianças nem no que elas punham no bolso em sua loja. Apesar de receber o pacote que pedira, deu uma surra no moleque porque este trouxe o pacote remendado, faltando cigarro. Os tapas que lhe deu duraram apenas alguns dias, mas o vício que sobrou ceifou o resto.
 Nunca foi de respeitar vivalma. Nem na casa dos pais de Dona Alice, quando ainda eram vivos, que Deus os tenha, se incomodava o homem o suficiente para se civilizar. Chamava palavrão, desdenhava das políticas do sogro, reclamava da comida da sogra. Certo dia, foi cruzar a entrada da casa, saindo, ao mesmo tempo em que vinha entrando o sogro, e a força que empregou para empurrar a porta jogou o velho sobre o próprio traseiro. Ao ver o acidente, o marido apenas mandou que o sogro prestasse mais atenção. Depois, prosseguiu seu caminho naturalmente.
Mesmo assim, Dona Alice nunca quis menos do que o melhor para seu marido. Tratava-o como rei. Bajulava-o e acarinhava-o como se fosse um santo. Mesmo em detrimento dos pais e dos filhos; Dona Alice sempre virava a cara para os maus comportamentos de seu esposo. Esforçava-se para ver apenas o melhor dele, e sabe-se lá quando que se via realizada. Dona Alice apequenou-se para permitir que seu marido ficasse confortável ocupando todo o espaço que desejasse. Era o capacho onde ele pisava. O rodo com que ele limpava os sapatos. As amigas de Dona Alice foram parando de visita-la com o passar do tempo, pois Dona Alice não gostava de conversar em casa, com medo de que seu marido pensasse que suas amigas lhe queimavam pelas costas. Certa vez, afinal, isso foi motivo para uma surra. Cogitar a possibilidade deixava-o muito bravo, e não era isso que queria Dona Alice. Portanto, com o tempo foi sedimentando a própria reclusão. Ao tempo da partida do marido, ela já havia virado prisioneira da casa.
O marido partiu com outra mulher. Uma mais jovem. Que lhe pudesse oferecer mais aventuras do que o passarinho encarcerado que ele mantinha em casa. Infelizmente, ao partir, deixou o passarinho sem saber voar. Para onde o homem foi, não se sabe. Talvez tenha saído do Brasil. Talvez tenha ido para a comarca mais próxima, quem sabe?
Nesse ponto, as senhoras paravam para suspirar. Tomavam goles de seus cafezinhos. Olhavam na direção que sabiam apontar para a casa de Dona Alice, como se ela pudesse ouvi-las. Sentiam-se mal. Sentiam tristes. Pensavam em todas as coisas boas que viveram; nos bons maridos, nos filhos que obtiveram sucesso. Nas viagens que fizeram, nas fotos que tiraram. No conforto em que viviam. Em tudo que sabiam que Dona Alice não tivera. No fundo, elas sabiam que a morte lhe seria bem vinda, pois Dona Alice já havia se despedido da vida a muito tempo. Só aguardava, agora. 
Dona Alice se casou no dia 7 de dezembro, após ter sido enrolada durante 7 anos pelo pretendente. Foi uma festa para muitos convidados, apesar da flagrante simplicidade. O seu vestido, branco e elaborado, era tão bonito... Mas choveu no dia. Um trator passara em frente à igreja e se formou um lamaçal na passagem. Os convidados ficaram todos sujos. O seu vestido, ao cabo do dia, estava arruinado. E todos lembravam do que dissera sua irmã, Dona Lourdes, longe de seus ouvidos.
“Este casamento não vai dar certo. Até a natureza está chorando.”

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Leve Desconfiança


O que é confiança?

A confiança, eu vim a imaginar, é a cessação momentânea da razão baseada na mera expectativa de comportamento pressuposto. É quando se deixa de levar em consideração fatores de um processo concreto, e se crê que ele tomará determinado desfecho ou direção baseando-se apenas na vivência. É estado fugaz de insanidade, poder-se-ia dizer. De puro desprendimento.
É a base, também, da Segurança, aquela segurança que habita no coração dos homens e que lhes dá forças para seguir nas direções que desejarem sem que desgastem-se com o descomprometimento, a aleatoriedade do real. Sem a confiança, qualquer passo parece um passo em falso, a superação se torna muito mais trabalhosa e tudo na vida parece muito mais complexo e perigoso.
A desconfiança e a insegurança fazem parte do cotidiano de todos nós. É por causa delas que, muitas vezes, amigos viram inimigos, desconhecidos vem a se estranhar nas festas, professores usam apenas de meia dedicação nas escolas, pais suprimem os sentimentos e aspirações dos filhos, namorados brigam feio em noites bonitas e desculpas não são pedidas e reparações não são providenciadas.
Hoje em dia, é bem verdade, é muito fácil deixar germinar esse sentimento traiçoeiro. Somos bombardeados com enxurradas de informações, conhecemos tantos casos e causos e fatos e estórias que às vezes não conseguimos ligar prosa a protagonista. Temos ao menos um exemplo para cada situação bizarra que a mente puder inventar, e até mais do que ela é capaz. Sabemos de todos os tipos de manipulação, de todas as espécies de traição, de todos os níveis de descomprometimento. Às vezes, junta-se o nosso medo interior, inconsciente e antigo a uma história chocante, surgida de um complexo totalmente diferente de nossa situação fática, e pronto: isso já basta para que tenhamos a sensação de que estivemos certos o tempo todo e que de algum modo conhecemos a realidade melhor do que ela é capaz de inovar. É como se aquilo fosse um atestado lavrado de que, só porque tal evento ocorreu com tal pessoa, somos o próximo alvo dessa espécie de acontecimento. Mas não adentrarei nos contornos da paranoia.
Esse evento isolado, aleatório e pífio no mosaico ultra diversificado e mega diferenciado do hodierno serve para que desse momento em diante a realidade se torne 100% previsível e completamente mapeada. É essa a solidificação da Insegurança, da confiança na Desconfiança.
Eu gosto de pensar que a realidade é mais enveredada e rica do que tudo aquilo que eu já vi ou ouvi em meus um quinto de século, sabe? Gosto de pensar que a vou continuar me surpreendendo com as coisas (até, quem sabe, me formar talvez?).
Nós somos mais telespectadores da vida do que gostamos de pensar. Devemos ao menos ser bons telespectadores, e não abandonar a apresentação antes da conclusão. Devemos ser cientes das coisas, não escravos delas. Há, lógico, a possibilidade de que eu seja vítima de caso similar àquele de que ouvi falar, claro. Assim como, e disso os inseguros e desconfiados se esquecem com facilidade, há uma possibilidade ainda maior de que um milhão de coisas aconteça.
Por isso então, na minha vida eu tomo providências e atitudes que me façam sentir algo seguro, e de resto espero apenas que as coisas desaguem o mais próximo possível do que eu desejei em primeiro lugar. E você? É satisfeito com sua atuação ou escravo do irreal e do hipotético?