É uso entre as
senhoras concordarem que Dona Alice foi uma mulher "que não passou pela vida". Hoje,
entre uma balançada e a próxima em suas cadeiras barulhentas, as velhas amigas
não conseguem senão escrutinar a vida que a outra levou; leva, é bem verdade,
porque ainda não morreu.
Está
próximo, elas concordam. O fim. As pernas inchadas, a pouca vitalidade que os
anos deixaram. Parece que a diabetes atacou de novo; agora não deve estar muito
longe. Ela nunca foi mulher de visão, mas já faz anos que sequer enxergava qualquer coisa.
Vivia trancada na sua casa, que era localizada na parte antiga do centro da
cidade. Não era a parte do centro que costuma ser nobre, não; aquela casa, onde
ela sempre morou, nunca foi grande coisa. Nem o valor imobiliário o tempo fez
estimar.
Um
cheiro de mofo que vencia o esforço dos desodorantes baratos, as velhas torciam
o nariz à mera lembrança. Os retratos embolorecidos. As janelas, imundas por
fora e sujas por dentro. A luz que entrava era como os fiapos que se veriam no
chão de uma cela. A televisão velha só gerava cores feias. Os programas
exibidos deveriam servir tanto como algemas para a mente como ópio para o
coração. As prateleiras eram repletas de itens que meramente sobreviveram ao
passado. Itens que provavelmente evocavam pouco ou nenhum sentimento à dona;
quando não deviam lhe trazer asco.
Os
filhos saíram cedo de casa. O primogênito apaixonou-se pelo pó e pela seringa. O
conceito de endereço fixo ele não entendia mais, e tanto sabe a vizinhança
sobre seus vícios que pouco confessa saber sobre seu paradeiro. Diz-se que ele
foi mutilado pelo mundo, uma furada por vez. Mas da caçula é que mais se fala:
virou porcelana fendida. Chorou pela mãe enquanto pôde, e o dia em que as
lágrimas secaram foi também o dia em que ela se despediu. Claro, o cumprimento
da despedida aqui é o eufemismo que todos usaram para não terem de entrar no
mérito das joias que a moça furtou da mãe. Machuca mais ainda saber que,
tivesse a pequena lhes pedido, a mãe tola as teria dado. Preferiu, outrossim, toma-las por meio vil, atirando a mãe em uma tristeza da qual nunca mais saiu. Mas o seu agir foi apenas
a vassourada que levou os fragmentos partidos do coração da mãe para baixo do
tapete.
É
triste, sabe? Depois desse dia, Dona Alice dizia que de suas pedrinhas
preciosas, nenhuma ficou.
Ninguém
censurava Dona Alice por não ter pedido pensão ao fim do casamento. Quando se
pensava em levantar essa hipótese, lembravam que alguém tinha levado essa
crítica a ela. Quem foi, ninguém se recorda, mas a resposta de Dona Alice é
fresca na memória de todos. Ela disse, A
vida toda passei sem que dinheiro visitasse minhas mãos. Por que, à esta
altura, quereria eu mudar essa realidade? Conformada, as pessoas
concordavam. Concordavam à meia voz. Porque a próxima parte da conversa era a
mais carregada.
Foi
tudo culpa do marido.
O
sujeito era um grosseirão. Arrogante tamanho que seu ego por pouco não tirou
CPF para si próprio. Um pobre que além de tudo era esnobe. A profissão (qual era,
ninguém lembrava ao certo) lhe fazia sentir como se rendesse milhões, ao invés
dos trocados para pagar as contas que realmente chegavam à sua conta. Isso não
o impedia de ser o coronel que seu jeito de andar fazia crer. Esbarrava nas
pessoas, cuspia na rua. Às vezes assobiava para moças mais jovens com Dona
Alice do lado, obrigando-a a fazer que não via.
O
marido era cruel e mesquinho. Nunca ligou para a educação dos filhos; talvez
sempre pretendesse abandoná-los. Batia-lhes quando as pancadas que dava em Dona
Alice não lhe satisfaziam. Certa vez mandou o mais velho, quando este ainda era uma
criança, lhe trazer um pacote de cigarros, mas ao invés de lhe dar dinheiro,
disse que o dono da mercearia não prestava atenção nas crianças nem no que elas
punham no bolso em sua loja. Apesar de receber o pacote que pedira, deu uma
surra no moleque porque este trouxe o pacote remendado, faltando cigarro. Os
tapas que lhe deu duraram apenas alguns dias, mas o vício que sobrou ceifou o
resto.
Nunca foi de respeitar vivalma. Nem na casa
dos pais de Dona Alice, quando ainda eram vivos, que Deus os tenha, se
incomodava o homem o suficiente para se civilizar. Chamava palavrão, desdenhava
das políticas do sogro, reclamava da comida da sogra. Certo dia, foi cruzar a
entrada da casa, saindo, ao mesmo tempo em que vinha entrando o sogro, e a
força que empregou para empurrar a porta jogou o velho sobre o próprio
traseiro. Ao ver o acidente, o marido apenas mandou que o sogro prestasse mais
atenção. Depois, prosseguiu seu caminho naturalmente.
Mesmo assim,
Dona Alice nunca quis menos do que o melhor para seu marido. Tratava-o como
rei. Bajulava-o e acarinhava-o como se fosse um santo. Mesmo em detrimento dos
pais e dos filhos; Dona Alice sempre virava a cara para os maus comportamentos
de seu esposo. Esforçava-se para ver apenas o melhor dele, e sabe-se lá quando
que se via realizada. Dona Alice apequenou-se para permitir que seu marido
ficasse confortável ocupando todo o espaço que desejasse. Era o capacho onde
ele pisava. O rodo com que ele limpava os sapatos. As amigas de Dona Alice
foram parando de visita-la com o passar do tempo, pois Dona Alice não gostava
de conversar em casa, com medo de que seu marido pensasse que suas amigas lhe
queimavam pelas costas. Certa vez, afinal, isso foi motivo para uma surra.
Cogitar a possibilidade deixava-o muito bravo, e não era isso que queria Dona
Alice. Portanto, com o tempo foi sedimentando a própria reclusão. Ao tempo da
partida do marido, ela já havia virado prisioneira da casa.
O marido
partiu com outra mulher. Uma mais jovem. Que lhe pudesse oferecer mais
aventuras do que o passarinho encarcerado que ele mantinha em casa. Infelizmente,
ao partir, deixou o passarinho sem saber voar. Para onde o homem foi, não se
sabe. Talvez tenha saído do Brasil. Talvez tenha ido para a comarca mais
próxima, quem sabe?
Nesse ponto,
as senhoras paravam para suspirar. Tomavam goles de seus cafezinhos. Olhavam na
direção que sabiam apontar para a casa de Dona Alice, como se ela pudesse
ouvi-las. Sentiam-se mal. Sentiam tristes. Pensavam em todas as coisas boas que
viveram; nos bons maridos, nos filhos que obtiveram sucesso. Nas viagens que
fizeram, nas fotos que tiraram. No conforto em que viviam. Em tudo que sabiam
que Dona Alice não tivera. No fundo, elas sabiam que a morte lhe seria bem vinda, pois Dona Alice já havia se despedido da vida a muito tempo. Só aguardava, agora.
Dona Alice se
casou no dia 7 de dezembro, após ter sido enrolada durante 7 anos pelo
pretendente. Foi uma festa para muitos convidados, apesar da flagrante simplicidade.
O seu vestido, branco e elaborado, era tão bonito... Mas choveu no dia. Um
trator passara em frente à igreja e se formou um lamaçal na passagem. Os
convidados ficaram todos sujos. O seu vestido, ao cabo do dia, estava
arruinado. E todos lembravam do que dissera sua irmã, Dona Lourdes, longe de
seus ouvidos.
“Este casamento não vai dar certo. Até a natureza
está chorando.”