Ok, então hoje eu venho a vós um pouco irritado. Ultrajado, para não falar de menos.
Vou ser conciso, porque a questão meio que arde em meu peito. Aliás, para não parecer demasiado superficial, vou lembra-lhes que sou cinéfilo – pronto, agora a crítica e a urgência devem fazer sentido.
Então, temos a seguinte questão: O Discurso do Rei é um filme inglês sobre a realeza britânica durante um momento crucial da história do – bem, do mundo: a Segunda Guerra Mundial. Mais à fundo, é sobre a superação do ainda-por-ser Rei, George VI. O filme adota a luta pela superação da gagueira do protagonista (que era simplesmente incapaz de falar em público) como metáfora para a sua preparação e então devida ascensão ao trono – trono este que ele toma de seu irmão irresponsável por meios completamente legais. O filme tem uma porcentagem de 95% de apreciação no site (meu favorito) Rotten Tomatoes, e foi indicado à 12 oscars. Tem performances excelentes de Colin Firth (ator principal) e Geofrey Rush (ator coadjuvante).
12 oscars. Uau. Isso é épico. Entrou para a história como um dos poucos filmes a ser tão bem indicados (perto de Ben Hur, Titanic e Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei). Sério mesmo? Digo, o filme termina com a tão esperada superação do personagem principal, que parece vencer a gagueira num discurso histórico que é refeito na íntegra para o telespectador. O discurso à mesa é o que expõe a posição da Inglaterra em relação à Alemanha; que se opõe ao nazismo ou coisa que o valha. O filme tenta transformar uma simples situação enunciativa no seu próprio ponto culminante, mas que infelizmente carece de valor ao telespectador desinteressado. A impressão que ficou, pra mim, foi bem adversa: que a vida daquele Rei era tão vazia que esses simples discursos eram a coisa mais importante que havia na Monarquia.
Enquanto eu enfrentava as 2 hrs de filme, eu sabia que a simples gagueira do protagonista não era grande empecilho. Oras, um rei que sabe falar é bom, mas um rei bom de verdade tem muitas outras qualidades. Eu sei disso. Eu espero que todos saibam disso. Não que o papel quase que meramente estético da monarquia seja assim tãão importante, mas tudo bem, eu vou pegar leve com os ingleses. O filme chega ao extremo de associar a Monarquia à “Voz do povo”, e que portanto um “Rei Gago” seria um absurdo, e que era absolutamente imperioso que o George conseguisse ler algumas linhas na rádio de vez em quando. O filme aproveita também e omite o fato de que o seu irmão, que perde o trono, era NAZISTA. Tudo o que mostram as câmeras é um cara gente boa, mas que está perdidamente apaixonado pela esposa, que por alguns motivos não pode virar rainha, e que é por causa disso que ele renuncia ao título de rei. Bem, pois é, ele era NAZISTA; permanecer no poder teria sido UM ABSURDO de qualquer forma, então o George IRIA subir ao poder, sendo ele gago, perneta, cego ou que quer que fosse! E outra; depois que George sobe ao poder, ele permanece com medo de que o povo não o queira lá; o que eu sei também ser um ABSURDO, porque hey, quem diabos ia apoiar o rei nazista? Opa, eu desmontei o “melhor filme do ano”? Me desculpa, eu nem prestei atenção. É que o filme é uma ilusão de câmera bem arquitetada, mas é na verdade tão frágil que alguma pesquisa histórica desmonta completamente o seu valor; como um truque barato de mágica, o filme passa a ser só uma mentira supervalorizada.
Aí nós temos filmes como Cisne Negro, A Rede Social, O Vencedor e, por que não, A Origem. Excelentes filmes, todos. Foram todos indicados à vários oscars. O meu favorito é O Vencedor; o filme trata sobre problemas pessoais numa família que enfrenta franca decadência, e como as várias faces do amor verdadeiro podem levar as pessoas em direções tão diferentes. O filme é ótimo, o filme é inteligente, o filme é profundo, o Christian Bale está simplesmente legendário na atuação que é facilmente a melhor do ano (tanto como ator coadjuvante como ator protagonista), e pô, o filme pegou 90% no RT e 7 indicações ao oscar. O que não é pouco, eu sei, mas 5 à menos que O Discurso do Rei. Gente, por favor. Por quê? O Vencedor, e todos os filmes que eu citei são melhores, muito melhores que O Discurso do Rei. Cisne Negro é mais filosófico, O Vencedor é mais humano e mais psicológico, A Rede Social é mais bem escrito e bem elaborado, e A Origem é, bem, mais original.
Nessas horas eu questiono se não existe certa confraria entre os críticos de cinema mais conceituados, ou se o trabalho deles é mesmo tão massificante que eles têm o mesmo gosto e os mesmos valores pessoais. A comparação entre O Discurso do Rei e O Vencedor foi proposital: ambos os filmes são baseados em histórias reais, ambos envolvem superação,ambos omitem certos fatos em prol de uma melhor dramaturgia e ambos tem um final óbvio de doer. A vantagem de O Vencedor é que ele consegue ser bom sem ser, UAU, monótono. Os caras de terno de O Discurso do Rei podem argumentar o que quiserem, mas qualquer história, quando bem contada, consegue ser mais interessante do que a simples monotonia que o filme é. A diferença avassaladora, meus leitores, é simples: um dos filmes lida com a pomposa Monarquia inglesa, enquanto o outro lida com uns boxeadores desconhecidos e de vida suburbana. Então, só por isso, o primeiro filme já sai em disparada na frente. É como se os caras do Oscar estivessem sentados tomando uma heineken e falassem “Hey, esse filme aqui sobre a monarquia britânica é bacana! Uau!”, aí outro falasse “Mas pô, esse daqui sobre a vida dos boxeadores também é muito bom!”, ao que a maioria dos presentes responderia “E daí, cara? AQUELE fala sobre a MONARQUIA BRITÂNICA! Isso é tipo, tão mais merecedor que qualquer outra coisa!”.
Digo, desculpa se eu não sou hipócrita a esse ponto, mas eu vou ao cinema para ver boas histórias serem contadas de uma maneira profissional, sem favorecer este ou aquele enredo só porque ele aborda este ou aquele tema. Tudo é filme, gente, nenhum deles faz diferença real, não é como se a Inglaterra estivesse dependendo do sucesso de O Discurso do Rei. O que faz diferença é que no final das contas, um filme é mais bem feito que o outro.
Se a função do cinema fosse fazer com que ficássemos ligado na história inglesa, sério, eu comprava um livro. Agora, um desabafo final: eu já sabia que na sociedade humana, as pessoas “nobres” e com maior valor de mercado levavam todo tipo de vantagem em cima das pessoas anônimas, mas agora ficou óbvio que até os filmes sobre essas pessoas nobres levam vantagem sobre os filmes sobre pessoas anônimas! Uau, até que para um filme cujo cerne é a defesa da democracia, O Discurso do Rei se revela completamente antidemocrático!