terça-feira, 27 de novembro de 2012

As criaturas que se escondiam embaixo de minha cama.



Uma casa grande nunca foi sinônimo de proteção. Isolamento e segurança não se pressupõem, sabe? A segurança existe em nós mesmos, enquanto o isolamento pouco tem a ver com o que fazemos ou deixamos de fazer. Um nós construímos moralmente, o outro nós podemos perseguir fisicamente. 
Eu tive um sonho interessante. Outro. Nesse, eu me mudava para uma grande e bela casa que ficava no centro de um enorme campo verde a dezenas de quilômetros de qualquer outra residência. Tratava-se, a bem da verdade, de uma mansão enorme de dois andares com mais espaço do que seria sensato engenhar. Havia inclusive um pequeno salão de festas no segundo andar, próximo de onde ficava o meu quarto. No meu quarto, que era gigantesco, uma grande vidraça em frente à cama se estendia do chão ao teto, cortando o telhado inclusive. Deitado, eu poderia ver o ambiente lá fora tranquilamente: desde o quilométrico campo que se expandia até bem longe no horizonte até o céu que daí surgia; e se eu quisesse, poderia continuar apreciando a vista levantando a cabeça para ver através do vidro que havia no telhado, enxergando assim todo o céu até a lua à pino lá em cima. O vidro cobria um raio de visão de 90º a partir da minha cama, digamos assim. A beleza da casa era tanta, confesso, que estou me convencendo a fazer um desenho para guardá-la comigo.
O motivo pelo qual eu me mudara para uma casa tão grande? Não sei dizer ao certo... Mas se tivesse que resumir numa resposta grosseira, diria “medo”.
Antes de minha mudança, eu vinha sendo perseguido. Perseguido por sombras que se esgueiravam quando eu não via, que me acompanhavam quando eu saía de casa. No início, sua presença era tão diminuta que eu me questionava se havia de fato motivo para as minhas paranoias. Quando eu saía com minha namorada, quando relaxava com meus amigos, quando cuidava de meus afazeres... eu percebia alguma presença, mas nada muito distinto do incômodo de uma dor de cabeça.
Foi, entretanto, piorando. De repente eu era capaz de ouvir seus passos. Eu ouvia os reflexos de seus movimentos: objetos que eram derrubados, gravetos se quebrando, pancadas em metal, tropeços em batentes... Era como uma perseguição onde eu não conseguia definir acuradamente a localização de meus perseguidores. Até que um belo dia, saindo de algum cinema, as sombras mostraram que aprenderam a correr. E como corriam... Nocauteado da minha sensação de realidade, assisti enquanto minhas pernas fugiam daquelas figuras pálidas de rosto embaçado e gritos estridentes. Saltando sobre mesas, me jogando por entre as pessoas, derrubando bolsas e crianças, era o tipo de perseguição que você vê nesses filmes novos do James Bond: grossa e perigosa. Espaços pequenos e franca velocidade dirigidos por uma mente subitamente monomaníaca e afetada por um medo que levava a um estado vertiginoso de desespero. Eu não consigo recordar como costumavam terminar essas perseguições. Só lembro de subitamente estar em casa... me sentindo à salvo. Abraçando minhas pernas, dormia uma noite sem cama escondido em algum lugar do recinto.
As perseguições desse tipo se tornaram mais frequentes. Tornaram-se mais perigosas, mais acirradas. As figuras, antes em pequenos números, ficavam mais e mais numerosas. Não tardou até que a segurança produzida por minha antiga casa fosse se esvaindo. Em determinado momento, os rostos esbranquiçados de meus algozes podiam ser vistos através de algumas janelas, refletidas nos espelhos de meu banheiro, nos meus corredores à noite. Como se não bastasse a falta de segurança que eu sofria quando saía para meus lazeres ou obrigações, agora minha própria casa tornara-se insuficiente, ineficaz.
Foi quando me mudei, finalmente. Entra o casarão que já lhes apresentei.
E por algum tempo, mesmo a minha liberdade pessoal ao sair, ao passear, retornou. Comecei a me sentir em paz, sem mais avistar as figuras inumanas.
Não preciso dizer que tratou-se de momento muito breve, claro. O melhor suspiro do moribundo.
As perseguições voltaram com força total um dia desses. Simplesmente. Até a proteção de meu novo casarão começou a ser insuficiente.
Até que numa noite de lua cheia despida de nuvens eu, num sobressalto, acordei de um sono amargo e olhei pela grande vidraça que ornamentava a frente de minha casa. Por uma fração de segundo que durou a eternidade, prendi a respiração. O que me acordara fora um baque alto na porta de entrada do primeiro andar, e enquanto eu absorvia o que meus olhos empurravam para o meu cérebro, eu compreendi.
Milhares de figuras esbranquiçadas amontoavam-se sobre o enorme campo que cercava minha moradia. Milhares e milhares, espremidas umas contra as outras, empurrando-se, apressadas, interessadas em sabe-se-lá-o-quê. Em mim. Ouvi os passos na minha escada, incontáveis passos. Passos assustadores. Não havia para onde correr. As paredes de minha morada me limitavam a fuga. Cortavam-me do mundo. Prendiam-me lá dentro, com eles. A porta de meu quarto foi arrancada de suas bases, pinos e parafusos tilintando no chão. Um rosto esbranquiçado, borrado, entrou e estendeu sua mão decrépita na minha direção, sem cerimônia, como se ele sempre soubesse onde eu estava. Como se nunca tivesse me perdido de vista.
Foi quando me ocorreu o seu nome. O nome daquele e de todos os outros seres que se estendiam por todas as direções ao redor da minha casa. Que me espreitavam de dentro dos armários, por debaixo de minha cama. Nos olhos daqueles que eu detestei. Nos sorrisos daqueles que amei. Nas coisas que fiz, nas coisas que deixei de fazer, nas coisas que nunca me ocorreu fazer. Nos dias que vivi, nos dias que os precederam e nos dias que ainda viriam. Problemas. Eram Meus Problemas.
Eu acordei logo em seguida. Atrasado de novo. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Escolhas Pessoais


Outro dia eu estava lendo sobre a legalização da maconha em algum lugar da internet quando me deparei com um diálogo que me despertou a atenção. Um dos comentaristas escreveu que detestava um dos outros usuários porque o achava um viciado irresponsável que não queria saber de nada, que passava seus dias, despenteado, fumando, fedendo e destruindo a sua juventude. Então alguém lhe respondeu que não cabia a ele falar nada, pois tratava-se de uma escolha pessoal do indivíduo. Ah é?
Hoje em dia a cultura mundial se expandiu com tal velocidade e com tanta potência que a diversidade usualmente é acachapante. Com mais frequência do que seria esperado nós nos deparamos com hábitos, com maneiras, com costumes de origem desconhecida. Essas diferenças podem ocorrer pelo simples transplante cultural, onde temos, por exemplo, aquele amigo que todo mundo tem que é viciado em cultura japonesa e parece um esquisitão total aos olhos dos nacionais mais tradicionais; podem ocorrer também pela fusão que as pessoas são propensas a fazer de costumes diversificados, o que explica desde aquelas pessoas que tem apenas um senso de moda “bizarro”, até aqueles que se diversificam de forma tão obstinada, uniforme, que viram subculturas que logo são rotuladas e amadas/discriminadas à arbitrariedade do senso comum.
Esses comportamentos, por si só, não são passíveis de repreensão. Oras, no amálgama moderno apátrida que é a internet, nos milhares de pessoas que convivem diuturnamente e que encontram seu jeitinho próprio de expandir sua personalidade e na subsequente facilidade com que se percebe os padrões e as similaridades que comprovam a limitação flagrante na originalidade humana, fica mais e mais necessário que as pessoas busquem atitudes cada vez mais extremas para provarem (tanto para si quanto para seus iguais) a sua identidade. Nesse âmbito, eu creio, surgem as escolhas pessoais. Algumas mais efêmeras, que refletem na maneira de se vestir, de se portar, outras mais fortes, que se traduzem na maneira de agir, de pensar, e até mesmo aquelas mais extremas que resultam em verdadeiras transformações de concepção de vida. Isso tudo, claro, é fruto da busca do homem pelo seu cerne individual, a sua necessidade de se estabelecer como um sujeito autoconsciente e aceito.
Mas eu acho que todo essa conceituação deve ser obrigatoriamente confrontado com a noção humana básica de, bem, autopreservação. Não creio que seja legítimo qualquer comportamento que implique a auto lesividade, sabe? Não importa de qual religião você seja, mesmo que você não tenha religião na verdade, as chances são de que a auto flagelação imotivada, ou erroneamente motivada, não faça parte do seu conceito de normalidade. A autopreservação, entenda, não é aquele simples instinto que te diz para não se machucar, mas sim aquele que diz para você não se machucar por nada. Na maturação humana a auto flagelação, na verdade, é constante. São as noites sem dormir e os dias desconfortáveis para estudar, para se divertir, sei lá, nós nos forçamos a muitas coisas quando temos objetivos. Mas sabe, a autopreservação deveria agir quando nos colocamos em uma perseguição fútil ou tentamos nos prejudicar por nada. A autopreservação é isso, é o ser humano se afastando da sua danação através da aplicação de sua própria sensatez, esperteza, etc.
Então, a auto-exploração versus a autopreservação. Onde está você? Você é desses que acha que o manto das “escolhas pessoais” te deixa imune ao criticismo fundamentado, só pelo bel fato ser uma escolha que você fez? Ou você é capaz de procurar o melhor para si? Há uma diferença entre a Lady Gaga ou o Eminem, que procuram chocar com o objetivo de impor sua originalidade enquanto fazem rios de dinheiro, mesmo à custa de sua liberdade pessoal, credibilidade ou respeitabilidade, e alguém que te machuque ou que te roube. Todos esses indivíduos fizeram, oras, escolhas pessoais. Apenas um deles não atendeu ao conceito de autopreservação (penal, social, jurídica, política, moral, etc) que eu mencionei, você consegue dizer qual?
E o sujeito que desperdiça a vida (a dele e a de seus próximos) fumando maconha, ou ingerindo qualquer tipo de substância imprestável, ilícita ou não, de fácil obtenção ou não? Você acha que ele não é passível de crítica só porque “ele fez uma escolha pessoal”?
E sabe, se você tem um conhecido que está viciado em algum tipo de droga e você quer sinceramente ajudá-lo, não creio que não criticá-lo seja o melhor caminho. Aposto, aliás, que você vai sim utilizar o desprezo e a crítica gerados pela autopreservação; só que vai canalizá-lo na direção das drogas e não da pessoa por quem você preza.
Sim, estou dizendo que o homem não pode se desvincular do sentimento de desprezo, ódio, raiva, etc, jamais. Por mais que os contos de fada e os livros de autoajuda te digam o contrário.  

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O ovo da Vanessa


   A história das eleições no Brasil vêm rastejando penosamente desde 1532, quando os primeiro colonizadores se organizaram em São Vicente para eleger os membros de sua câmara municipal, passando por conturbados períodos históricos e pelos mais diferentes sistemas políticos, cruzando 1821, quando o voto rompeu a barreira regional e começou a ser exercido para eleições de âmbito nacional, atravessando o batalhado período da comoção pelas Diretas Já de 1984, e todos os vetores de desenvolvimento terminam na mais recente ovada na cara da concorrente a prefeita, Vanessa Grazziotin, na noite de terça-feira, dia 11/09/2012. Isso no mínimo me faz matutar acerca da supervalorizada noção de que o ser humano é um animal em eterna evolução.
   A candidata pouco se permitiu refletir antes de acusar logo o partido tucano de Arthur Neto, coincidentemente o seu maior rival nas próximas eleições, de ser o responsável pelo seu batismo gosmento.
Não que ela não mereça, ou não que ela mereça, tanto faz. Mas a verdade intransmutável do fato é que um bom ovo foi desperdiçado naquela noite, o que me traz à mente todas as vezes em que simplesmente não havia nada para eu comer de madrugada lá em casa.
     Para a minha surpresa, entretanto, não tardou a se esgueirar por entre os ouvidos dos cidadãos desta bela capital a tese de que tudo havia se tratado de uma grande farsa armada pelo próprio partido da candidata, com o escopo de atrelar o estigma de anti-feminista ao partido de seu adversário. Logicamente, quem cunhou a referida tese foi o próprio Arthur Neto, com base em imagens e vídeos da internet. Pináculo da sua teoria é o fato de que, após profundo esquadrinhamento das fotos da melecada na face da candidata rival, não se pôde localizar o menor vestígio de casca de ovo. Não que eu esteja cético à técnica jurídica empregada, ou que eu considere o evento todo uma grande e desnecessária bobajada ( o que eu acho), mas daí levar a sua tese para apreciação no Superior Tribunal Eleitoral, como se lá já não houvesse bastante trabalho sério para ser deslindado, já é desvirtuamento democrático E jurídico.
     Se a candidata vier a ser eleita, Deus nos livre, eu lanço mão do seguinte palpite: aposto que ninguém vai nem se lembrar de proposta alguma que ela tenha feito. Ninguém, nada. Ela seria eleita como a candidata do ovo. No grande mosaico de eleições nacionais, nós, Manaus, teríamos eleito a prefeita que levou ovada na cara. Essa será sua única definição. Isso serve apenas para denunciar o quão efêmeras estão as propostas políticas nesta eleição. Digo isso também porque, se a Vanessa pode dizer que é a candidata do ovo, Arthur Neto não tem sequer banca eleitoral atualizada para ser lembrado. Para mim ele é apenas, ainda, o candidato a prefeito que já foi senador; pronto, essa é a sua característica marcante, esse é o jogo que ele está trazendo para a política regional. Ele já foi senador.
     Então, ex-senador versus ovo na cara. Vocês que são brancos que decidam quem leva essa. 
     Pronto, não vou comentar a história política de nenhum dos candidatos, não vou mencionar as serpentes que se escondem em cada coligação, a traição que aguarda em cada partido. Vim aqui apenas e somente apenas para falar da parada do ovo. Até porque, se a Vanessa está reclamando que lhe melaram a cara com um ovo ou uma cusparada ou coisa que o valha, eu gostaria de fazê-la sentir o que sinto quando penso na cara-de-pau que é a sua candidatura. Ovada é refresco perto de político imundo.  

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O matrimônio de Dona Alice



É uso entre as senhoras concordarem que Dona Alice foi uma mulher "que não passou pela vida". Hoje, entre uma balançada e a próxima em suas cadeiras barulhentas, as velhas amigas não conseguem senão escrutinar a vida que a outra levou; leva, é bem verdade, porque ainda não morreu.
                Está próximo, elas concordam. O fim. As pernas inchadas, a pouca vitalidade que os anos deixaram. Parece que a diabetes atacou de novo; agora não deve estar muito longe. Ela nunca foi mulher de visão, mas já faz anos que sequer enxergava qualquer coisa. Vivia trancada na sua casa, que era localizada na parte antiga do centro da cidade. Não era a parte do centro que costuma ser nobre, não; aquela casa, onde ela sempre morou, nunca foi grande coisa. Nem o valor imobiliário o tempo fez estimar.
                Um cheiro de mofo que vencia o esforço dos desodorantes baratos, as velhas torciam o nariz à mera lembrança. Os retratos embolorecidos. As janelas, imundas por fora e sujas por dentro. A luz que entrava era como os fiapos que se veriam no chão de uma cela. A televisão velha só gerava cores feias. Os programas exibidos deveriam servir tanto como algemas para a mente como ópio para o coração. As prateleiras eram repletas de itens que meramente sobreviveram ao passado. Itens que provavelmente evocavam pouco ou nenhum sentimento à dona; quando não deviam lhe trazer asco.
                Os filhos saíram cedo de casa. O primogênito apaixonou-se pelo pó e pela seringa. O conceito de endereço fixo ele não entendia mais, e tanto sabe a vizinhança sobre seus vícios que pouco confessa saber sobre seu paradeiro. Diz-se que ele foi mutilado pelo mundo, uma furada por vez. Mas da caçula é que mais se fala: virou porcelana fendida. Chorou pela mãe enquanto pôde, e o dia em que as lágrimas secaram foi também o dia em que ela se despediu. Claro, o cumprimento da despedida aqui é o eufemismo que todos usaram para não terem de entrar no mérito das joias que a moça furtou da mãe. Machuca mais ainda saber que, tivesse a pequena lhes pedido, a mãe tola as teria dado. Preferiu, outrossim, toma-las por meio vil, atirando a mãe em uma tristeza da qual nunca mais saiu. Mas o seu agir foi apenas a vassourada que levou os fragmentos partidos do coração da mãe para baixo do tapete.
                É triste, sabe? Depois desse dia, Dona Alice dizia que de suas pedrinhas preciosas, nenhuma ficou.
                Ninguém censurava Dona Alice por não ter pedido pensão ao fim do casamento. Quando se pensava em levantar essa hipótese, lembravam que alguém tinha levado essa crítica a ela. Quem foi, ninguém se recorda, mas a resposta de Dona Alice é fresca na memória de todos. Ela disse, A vida toda passei sem que dinheiro visitasse minhas mãos. Por que, à esta altura, quereria eu mudar essa realidade? Conformada, as pessoas concordavam. Concordavam à meia voz. Porque a próxima parte da conversa era a mais carregada.
                   Foi tudo culpa do marido.
                O sujeito era um grosseirão. Arrogante tamanho que seu ego por pouco não tirou CPF para si próprio. Um pobre que além de tudo era esnobe. A profissão (qual era, ninguém lembrava ao certo) lhe fazia sentir como se rendesse milhões, ao invés dos trocados para pagar as contas que realmente chegavam à sua conta. Isso não o impedia de ser o coronel que seu jeito de andar fazia crer. Esbarrava nas pessoas, cuspia na rua. Às vezes assobiava para moças mais jovens com Dona Alice do lado, obrigando-a a fazer que não via.
                O marido era cruel e mesquinho. Nunca ligou para a educação dos filhos; talvez sempre pretendesse abandoná-los. Batia-lhes quando as pancadas que dava em Dona Alice não lhe satisfaziam. Certa vez  mandou o mais velho, quando este ainda era uma criança, lhe trazer um pacote de cigarros, mas ao invés de lhe dar dinheiro, disse que o dono da mercearia não prestava atenção nas crianças nem no que elas punham no bolso em sua loja. Apesar de receber o pacote que pedira, deu uma surra no moleque porque este trouxe o pacote remendado, faltando cigarro. Os tapas que lhe deu duraram apenas alguns dias, mas o vício que sobrou ceifou o resto.
 Nunca foi de respeitar vivalma. Nem na casa dos pais de Dona Alice, quando ainda eram vivos, que Deus os tenha, se incomodava o homem o suficiente para se civilizar. Chamava palavrão, desdenhava das políticas do sogro, reclamava da comida da sogra. Certo dia, foi cruzar a entrada da casa, saindo, ao mesmo tempo em que vinha entrando o sogro, e a força que empregou para empurrar a porta jogou o velho sobre o próprio traseiro. Ao ver o acidente, o marido apenas mandou que o sogro prestasse mais atenção. Depois, prosseguiu seu caminho naturalmente.
Mesmo assim, Dona Alice nunca quis menos do que o melhor para seu marido. Tratava-o como rei. Bajulava-o e acarinhava-o como se fosse um santo. Mesmo em detrimento dos pais e dos filhos; Dona Alice sempre virava a cara para os maus comportamentos de seu esposo. Esforçava-se para ver apenas o melhor dele, e sabe-se lá quando que se via realizada. Dona Alice apequenou-se para permitir que seu marido ficasse confortável ocupando todo o espaço que desejasse. Era o capacho onde ele pisava. O rodo com que ele limpava os sapatos. As amigas de Dona Alice foram parando de visita-la com o passar do tempo, pois Dona Alice não gostava de conversar em casa, com medo de que seu marido pensasse que suas amigas lhe queimavam pelas costas. Certa vez, afinal, isso foi motivo para uma surra. Cogitar a possibilidade deixava-o muito bravo, e não era isso que queria Dona Alice. Portanto, com o tempo foi sedimentando a própria reclusão. Ao tempo da partida do marido, ela já havia virado prisioneira da casa.
O marido partiu com outra mulher. Uma mais jovem. Que lhe pudesse oferecer mais aventuras do que o passarinho encarcerado que ele mantinha em casa. Infelizmente, ao partir, deixou o passarinho sem saber voar. Para onde o homem foi, não se sabe. Talvez tenha saído do Brasil. Talvez tenha ido para a comarca mais próxima, quem sabe?
Nesse ponto, as senhoras paravam para suspirar. Tomavam goles de seus cafezinhos. Olhavam na direção que sabiam apontar para a casa de Dona Alice, como se ela pudesse ouvi-las. Sentiam-se mal. Sentiam tristes. Pensavam em todas as coisas boas que viveram; nos bons maridos, nos filhos que obtiveram sucesso. Nas viagens que fizeram, nas fotos que tiraram. No conforto em que viviam. Em tudo que sabiam que Dona Alice não tivera. No fundo, elas sabiam que a morte lhe seria bem vinda, pois Dona Alice já havia se despedido da vida a muito tempo. Só aguardava, agora. 
Dona Alice se casou no dia 7 de dezembro, após ter sido enrolada durante 7 anos pelo pretendente. Foi uma festa para muitos convidados, apesar da flagrante simplicidade. O seu vestido, branco e elaborado, era tão bonito... Mas choveu no dia. Um trator passara em frente à igreja e se formou um lamaçal na passagem. Os convidados ficaram todos sujos. O seu vestido, ao cabo do dia, estava arruinado. E todos lembravam do que dissera sua irmã, Dona Lourdes, longe de seus ouvidos.
“Este casamento não vai dar certo. Até a natureza está chorando.”

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Leve Desconfiança


O que é confiança?

A confiança, eu vim a imaginar, é a cessação momentânea da razão baseada na mera expectativa de comportamento pressuposto. É quando se deixa de levar em consideração fatores de um processo concreto, e se crê que ele tomará determinado desfecho ou direção baseando-se apenas na vivência. É estado fugaz de insanidade, poder-se-ia dizer. De puro desprendimento.
É a base, também, da Segurança, aquela segurança que habita no coração dos homens e que lhes dá forças para seguir nas direções que desejarem sem que desgastem-se com o descomprometimento, a aleatoriedade do real. Sem a confiança, qualquer passo parece um passo em falso, a superação se torna muito mais trabalhosa e tudo na vida parece muito mais complexo e perigoso.
A desconfiança e a insegurança fazem parte do cotidiano de todos nós. É por causa delas que, muitas vezes, amigos viram inimigos, desconhecidos vem a se estranhar nas festas, professores usam apenas de meia dedicação nas escolas, pais suprimem os sentimentos e aspirações dos filhos, namorados brigam feio em noites bonitas e desculpas não são pedidas e reparações não são providenciadas.
Hoje em dia, é bem verdade, é muito fácil deixar germinar esse sentimento traiçoeiro. Somos bombardeados com enxurradas de informações, conhecemos tantos casos e causos e fatos e estórias que às vezes não conseguimos ligar prosa a protagonista. Temos ao menos um exemplo para cada situação bizarra que a mente puder inventar, e até mais do que ela é capaz. Sabemos de todos os tipos de manipulação, de todas as espécies de traição, de todos os níveis de descomprometimento. Às vezes, junta-se o nosso medo interior, inconsciente e antigo a uma história chocante, surgida de um complexo totalmente diferente de nossa situação fática, e pronto: isso já basta para que tenhamos a sensação de que estivemos certos o tempo todo e que de algum modo conhecemos a realidade melhor do que ela é capaz de inovar. É como se aquilo fosse um atestado lavrado de que, só porque tal evento ocorreu com tal pessoa, somos o próximo alvo dessa espécie de acontecimento. Mas não adentrarei nos contornos da paranoia.
Esse evento isolado, aleatório e pífio no mosaico ultra diversificado e mega diferenciado do hodierno serve para que desse momento em diante a realidade se torne 100% previsível e completamente mapeada. É essa a solidificação da Insegurança, da confiança na Desconfiança.
Eu gosto de pensar que a realidade é mais enveredada e rica do que tudo aquilo que eu já vi ou ouvi em meus um quinto de século, sabe? Gosto de pensar que a vou continuar me surpreendendo com as coisas (até, quem sabe, me formar talvez?).
Nós somos mais telespectadores da vida do que gostamos de pensar. Devemos ao menos ser bons telespectadores, e não abandonar a apresentação antes da conclusão. Devemos ser cientes das coisas, não escravos delas. Há, lógico, a possibilidade de que eu seja vítima de caso similar àquele de que ouvi falar, claro. Assim como, e disso os inseguros e desconfiados se esquecem com facilidade, há uma possibilidade ainda maior de que um milhão de coisas aconteça.
Por isso então, na minha vida eu tomo providências e atitudes que me façam sentir algo seguro, e de resto espero apenas que as coisas desaguem o mais próximo possível do que eu desejei em primeiro lugar. E você? É satisfeito com sua atuação ou escravo do irreal e do hipotético?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Injustiça Infantil


   “ O nome desse... é Salsicha. O nome desse... é Scooby”.
   3 ou 4 anos tem a menininha sentada à minha frente. Ela sorri timidamente enquanto minha colega de trabalho lhe apresenta os bonequinhos de pelúcia.
   “...Scooby”, ela repete. A sua voz é daquele tom meio esganiçado das crianças pequenas, ainda apenas conhecendo o vocabulário e o léxico. Ela sorri, enquanto toca o boneco de maneira contida.
   Cabelos desgrenhados, amarrados num faz-de-conta que quisera sua mãe fazer crer ser um coque.    Vestidinho vermelho quadriculado, eu só posso sorrir enquanto me indago se alguma festa junina aguarda essa menina. Minha colega se apressa em fazer aparecer um pedaço de bolo para a criança, que ainda tem um aspecto assustado no rosto.
   Assustado porque ela está no Fórum. Porque ela está numa Promotoria de Justiça, e porque sua mãe e sua tia estão, à portas fechadas, na sala da promotora. Nenhuma criança jamais conseguirá se sentir em casa aqui na Promotoria da Infância e da Juventude, até porque o mero fato de estarem aqui me fazem supor que elas nunca foram muito íntimas com o conceito de “Lar”. Talvez casa, talvez quarto, mas não do amor e do recanto que são a argamassa de um verdadeiro Lar.
   Há uma música toda especial, também. Ela enche o ar ao nosso redor, e tenho certeza de que, pelo volume em que a ouço, ela se espalha pelos corredores do Fórum, em direção aos ouvidos dos que passam; não é com estes que me preocupo. A música é o som dos gritos de suas parentes. Elas gritam contra a promotora... Entre si... Contra a criança... São gritos de raiva. Há algumas ofensas. A promotora chega a mandar alguém calar a boca; situações que envolvem criancinhas fazem-na descer do salto alto como qualquer ser humano.
   Antes absorto em meus afazeres, sou arrastado às entranhas medonhas do momento. Percebo que nunca ouvi gritos tão altos por aqui antes.
   Não há nenhum jargão jurídico nas frases da promotora. Apenas português claro, enquanto ela joga acusações contra mãe e tia da criança. Uma levou a criança da casa da outra, alegou maus tratos, não queria devolver, a outra correndo atrás se sentindo injustiçada. “A criança teve dor de dentes”, alguém afirma. Maus cuidados, agressões, abandono... Meu Deus, mesma rotina.
   Observo a criança novamente. São dela os ouvidos com que me preocupo; eu sou mais velho e já ouvi muita coisa nessa vida. Mas os ouvidinhos dela, menores e mais aguçados que os meus até, não sei como estão fazendo seu coraçãozinho sentir. Certas conversas não deveriam chegar ao ouvido dos menores; se ninguém se entende numa briga, quem vai explicar para uma criança por que a família dela reitera esse comportamento, tanto em casa como na rua.
   A perninha direita da criança está toda engessada. Desde o pezinho até acima do joelho; o gesso escala a perna dela como uma serpente. Eu olho novamente a porta fechada, acho que tenho a cara fechada também. Por trás dela, a promotora e as parentes da criança ainda discutem bem alto.
   “O que houve com sua perna, garotinha?”, pergunto.
   Ela me observa por um momento, antes de abraçar o Salsinha e o Scooby, e responde: “Caí”
   “Caiu de onde?”
   “... Da rede...” ela responde, baixinho.
   Eu olho a porta novamente, como se ela tivesse algo a ver com tudo isso. Duas mulheres aparentemente interessadas na criança, mas nenhuma parece se dar ao trabalho de evitar que esse tipo de infortúnio lhe caia.            Às vezes as crianças são fruto do amor da família, às vezes são meio para fazer aflorar o ódio que existe nela. E eu me pergunto se há solução para os problemas que estão sendo debatidos dentro da sala da promotora. Talvez sim; mas se isso tem qualquer relação com a criança que está agora abraçada com o Scooby, de perninha quebrada e com aspecto assustado, eu não sei. Não sei porque os desentendimentos entre mãe e tia podem até ter motivo, e portanto haver solução. Mas para o descaso, para a objetificação da criança... Eu não sei se há solução para isso.
   Todas as injustiças encontram seu caminho ao tribunal. Das maiores, que saem no jornal, às menores, que estão sem fome para o bolo.
   “ Tem mais brinquedo?”, ela pergunta, menos inibida.
   Uma pena que não tenha. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Sobre sonhos e lobos

Eu tive o sonho mais estranho esta noite.

Nele, era mais um dia normal na minha vida, e tudo começou quando eu resolvi sair de casa para cuidar de um assunto; e se não me ilude a memória, foi para comprar alguma coisa. E nesse início, como não depois, a minha casa ainda era de fato a minha casa. Lembro de pegar o carro e de estar atrás de um balcão, esperando receber o produto. Lembro também que, ao sair da loja, ocorreu-me realizar uma outra tarefa. Entrei no carro, dei partida no carro e saí na rua.

A partir daí, o sonho se torna um monte de imagens que se sobrepõe em alta velocidade, e mais transmitem sensações que propriamente elucidam qualquer coisa. Sinto que a realização da outra tarefa logo se tornou uma aventura que me fez percorrer os cantos mais recônditos de uma cidade sem fim. Viajei de ponta a ponta, conheci pessoas novas, fui de objetivo em objetivo; sem nunca voltar para casa. Incansavelmente me punha a procurar e a resolver todos os problemas que pudessem se pôr entre mim e meus objetivos, estendendo sempre mais uma viagem que se esticou de tal forma no meu peito que pareceu levar anos. Não mais tinha eu de comprar coisas, mas encontrar objetos, realizar trabalhos, atender favores, fornecer ajuda, pesquisar soluções, todo tipo de deveres que surgem regularmente no cotidiano de uma pessoa que busca desenvolvimento e crescimento pessoal.

No meu caminho, conheci várias pessoas diferentes. Não me é possível lembrar-me a fundo das características de nenhuma em específico, mas sei que algumas foram reaproveitadas pela minha mente da minha própria vida. Alguns rostos, embora embaralhados de forma a impossibilitar a minha lembrança clara, eu sinto que conheci de verdade, enquanto outros foram simplesmente inventados. Lembro de sentir, no entanto, ter me apegado a diversos desses rostos embaçados; alguns me ajudaram a resolver meus problemas, outros eu ajudei de alguma forma. Alguns por um tempo levei para rodar em meu próprio carro, uns por obrigação, outros por afeto mesmo. Sinto a alegria de conhecê-los e a tristeza por vê-los partir como se cada uma dessas ocasiões tivessem sido verídicas. Lembro também que cresci pessoalmente com a convivência que tive com cada um deles, nas dezenas que foram. O sonho foi evoluindo, durante essa viagem, em algo que nunca antes meu subconsciente conseguiu sintetizar, de modo que no final dela, e até agora enquanto escrevo este texto, meus sentimentos são afetados pela realidade de tudo aquilo.

Durante a viagem, além das pessoas que fui conhecendo, fui ganhando presentes e adquirindo itens que guardei no porta-malas do carro; como as conquistas que vamos acumulando durante nossas vidas. Quanto mais viajava, quanto mais cumpria meus objetivos, mais coisas tinha para guardar no porta-malas; testemunhas de meus sucessos. Aquilo, assim como a experiência que eu adquiria com as outras pessoas, enchia-me o peito de glórias. Eu enriqueci de todas as formas durante minha viagem...

Até que anoiteceu. No sonho, não lembro se foi a primeira noite que encontrei, ou se muitas outras se passaram ( o que seria mais lógico, já que para mim foram anos que se sucederam). Sei que foi a noite mais nítida de todas, para não dizer a única. Lembro de descer as escadas de uma casa num terreno deserto, com um prato de comida em minhas mãos. O prato estava protegido numa bandeja tampada, e a rua que me esperava ao pé da escada era iluminada apenas por um poste, e de todo modo solitária. Entrei no carro e segui para casa.
Minha casa não era mais a minha casa, mas uma espécie de escola, onde várias pessoas da minha idade moravam. Estacionei o carro, e única coisa que levei dele comigo foi a comida; parecia ser ela a culminação de todo o meu esforço, o objetivo maior e mais recompensador. Entrei pela porta da frente com uma alegria que não cabia no peito, levando a bandeja com minhas duas mãos, muito orgulhoso. No corredor de minha casa, que mais parecia com os largos e cheios corredores de uma escola, entretanto, fui encontrando colegas que me olhavam... feio. Todos passavam e me lançavam olhares enojados, irritados. Fui começando a sentir um aperto no estômago, ao invés de felicidade no peito. Logo senti minha expressão facial transformar-se numa clara indagativa. Queria saber por quê todos me tratavam com desdém e reprovação. Até porque grande parte dos que passavam eu havia conhecido na minha viagem, e por eles nutria muita consideração. Os corredores lotados de discórdia pareciam exageradamente longos, e ao final meu coração já batia acelerado e uma paranoia havia se apossado de mim.

Finalmente, após longo caminhar, cheguei no refeitório (sim, era um refeitório, com muitas daquelas mesas longas de praça-de-alimentação, cheia de cadeiras para acomodar centenas de pessoas). Logo na entrada, no entanto, fui abordado por uma figura de rosto fora de foco que finalmente me explicou o motivo de tanto ódio:
“No decorrer de sua viagem, Haroldo, você se utilizou de todas as pessoas com que teve contato; sempre de maneira egoística, impessoal, tratou de se aproveitar, de sugar o que elas tinham a oferecer de melhor, e não hesitou em chutá-las para fora de seu carro assim que se sentia completo e satisfeito. Você fez mal para absolutamente todas as pessoas com que teve contato, e elas não carregam senão sentimentos ruins sobre você.”

Aquela declaração doeu-me. Doeu-me ainda mais porque aquele rosto fora de foco tinha alguma espécie de carga emocional de grande efeito em mim. Aquelas palavras fizeram-me sentar e assistir uma segunda vez minha viagem, onde pude então reparar que de fato, muito embora no momento não tivesse sido capaz de perceber, eu tratava as pessoas como se objetos fossem, elaborados com o único propósito de satisfazer-me as necessidades. Reparei então a tristeza que lhes infligia com a minha partida, e a frieza com que nunca mais fazia questão delas ou coisa que o valha. E de repente, o refeitório estava vazio. Vazio como se nunca uma alma houvesse posto o pé lá. Afora eu, claro.

Lembro que o refeitório, suas mesas, cadeiras, paredes e tudo o mais, eram de cor predominantemente branca. A claridade era simplesmente elucidativa. Lembro-me então de, em silêncio, abrir minha bandeja com comida. A bandeja não me trazia mais nenhum contentamento; era um sabor amargo de decepção e angústia o daquela comida. Comi em silêncio, completamente sozinho e de cabeça baixa, como se nunca minha vida houvesse me trazido qualquer tipo de felicidade. Até que levantei a cabeça para encontrar à minha frente um grande lobo negro, como que saído do vazio, que se sentava à mesa como se gente fosse. Podia muito bem ser alguém fantasiado, sentado com as mãos à mesa, imóveis; só que era um lobo, com focinho, pelo farto e muito magro. Gostaria de poder recordar a cor de seus olhos mas sou completamente incapaz, portanto em minha memória seus olhos eram brancos como a sala ao redor. Ele me observava calmamente, e não demorou a falar. E o mais assustador de tudo era que, apesar do aspecto agourento, sinistro, sua voz era tranquila, racional e insanamente sensata:

    • Então, qual é afinal o gosto da comida de que agora desfrutas?

Acordei, mas o sonho me matou um pouquinho.