Uma casa grande nunca foi sinônimo de proteção. Isolamento e segurança
não se pressupõem, sabe? A segurança existe em nós mesmos, enquanto o
isolamento pouco tem a ver com o que fazemos ou deixamos de fazer. Um nós construímos moralmente, o outro nós podemos perseguir fisicamente.
Eu tive um sonho interessante. Outro. Nesse, eu me mudava para
uma grande e bela casa que ficava no centro de um enorme campo verde a dezenas
de quilômetros de qualquer outra residência. Tratava-se, a bem da verdade, de
uma mansão enorme de dois andares com mais espaço do que seria sensato
engenhar. Havia inclusive um pequeno salão de festas no segundo andar, próximo
de onde ficava o meu quarto. No meu quarto, que era gigantesco, uma grande
vidraça em frente à cama se estendia do chão ao teto, cortando o telhado
inclusive. Deitado, eu poderia ver o ambiente lá fora tranquilamente: desde o
quilométrico campo que se expandia até bem longe no horizonte até o céu que daí
surgia; e se eu quisesse, poderia continuar apreciando a vista levantando a
cabeça para ver através do vidro que havia no telhado, enxergando assim todo o
céu até a lua à pino lá em cima. O vidro cobria um raio de visão de 90º a
partir da minha cama, digamos assim. A beleza da casa era tanta, confesso, que
estou me convencendo a fazer um desenho para guardá-la comigo.
O motivo pelo qual eu me mudara para uma casa tão grande? Não sei dizer
ao certo... Mas se tivesse que resumir numa resposta grosseira, diria “medo”.
Antes de minha mudança, eu vinha sendo perseguido. Perseguido por
sombras que se esgueiravam quando eu não via, que me acompanhavam quando eu
saía de casa. No início, sua presença era tão diminuta que eu me questionava se
havia de fato motivo para as minhas paranoias. Quando eu saía com minha
namorada, quando relaxava com meus amigos, quando cuidava de meus afazeres...
eu percebia alguma presença, mas nada muito distinto do incômodo de uma dor de
cabeça.
Foi, entretanto, piorando. De repente eu era capaz de ouvir seus passos.
Eu ouvia os reflexos de seus movimentos: objetos que eram derrubados, gravetos
se quebrando, pancadas em metal, tropeços em batentes... Era como uma
perseguição onde eu não conseguia definir acuradamente a localização de meus
perseguidores. Até que um belo dia, saindo de algum cinema, as sombras
mostraram que aprenderam a correr. E como corriam... Nocauteado da minha
sensação de realidade, assisti enquanto minhas pernas fugiam daquelas figuras
pálidas de rosto embaçado e gritos estridentes. Saltando sobre mesas, me
jogando por entre as pessoas, derrubando bolsas e crianças, era o tipo de
perseguição que você vê nesses filmes novos do James Bond: grossa e perigosa.
Espaços pequenos e franca velocidade dirigidos por uma mente subitamente
monomaníaca e afetada por um medo que levava a um estado vertiginoso de
desespero. Eu não consigo recordar como costumavam terminar essas perseguições.
Só lembro de subitamente estar em casa... me sentindo à salvo. Abraçando minhas
pernas, dormia uma noite sem cama escondido em algum lugar do recinto.
As perseguições desse tipo se tornaram mais frequentes. Tornaram-se mais
perigosas, mais acirradas. As figuras, antes em pequenos números, ficavam mais
e mais numerosas. Não tardou até que a segurança produzida por minha antiga
casa fosse se esvaindo. Em determinado momento, os rostos esbranquiçados de
meus algozes podiam ser vistos através de algumas janelas, refletidas nos
espelhos de meu banheiro, nos meus corredores à noite. Como se não bastasse a
falta de segurança que eu sofria quando saía para meus lazeres ou obrigações,
agora minha própria casa tornara-se insuficiente, ineficaz.
Foi quando me mudei, finalmente. Entra o casarão que já lhes apresentei.
E por algum tempo, mesmo a minha liberdade pessoal ao sair, ao passear,
retornou. Comecei a me sentir em paz, sem mais avistar as figuras inumanas.
Não preciso dizer que tratou-se de momento muito breve, claro. O melhor
suspiro do moribundo.
As perseguições voltaram com força total um dia desses. Simplesmente.
Até a proteção de meu novo casarão começou a ser insuficiente.
Até que numa noite de lua cheia despida de nuvens eu, num sobressalto,
acordei de um sono amargo e olhei pela grande vidraça que ornamentava a frente
de minha casa. Por uma fração de segundo que durou a eternidade, prendi a
respiração. O que me acordara fora um baque alto na porta de entrada do
primeiro andar, e enquanto eu absorvia o que meus olhos empurravam para o meu
cérebro, eu compreendi.
Milhares de figuras esbranquiçadas amontoavam-se sobre o enorme campo
que cercava minha moradia. Milhares e milhares, espremidas umas contra as
outras, empurrando-se, apressadas, interessadas em sabe-se-lá-o-quê. Em mim.
Ouvi os passos na minha escada, incontáveis passos. Passos assustadores. Não
havia para onde correr. As paredes de minha morada me limitavam a fuga. Cortavam-me
do mundo. Prendiam-me lá dentro, com eles. A porta de meu quarto foi arrancada
de suas bases, pinos e parafusos tilintando no chão. Um rosto esbranquiçado,
borrado, entrou e estendeu sua mão decrépita na minha direção, sem cerimônia,
como se ele sempre soubesse onde eu estava. Como se nunca tivesse me perdido de
vista.
Foi quando me ocorreu o seu nome. O nome daquele e de todos os outros
seres que se estendiam por todas as direções ao redor da minha casa. Que me
espreitavam de dentro dos armários, por debaixo de minha cama. Nos olhos
daqueles que eu detestei. Nos sorrisos daqueles que amei. Nas coisas que fiz,
nas coisas que deixei de fazer, nas coisas que nunca me ocorreu fazer. Nos dias
que vivi, nos dias que os precederam e nos dias que ainda viriam. Problemas. Eram
Meus Problemas.
Eu acordei logo em seguida. Atrasado de novo.
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