sábado, 26 de março de 2011

A Civilização está morta

É uma criança de 14 anos. Alto e magricela, o rapaz parece uma boneco de madeira à lá Pinóquio; com braços e pernas compridos e finos, que ficam evidentes fora da regata que ele traja. Quem é ele? Sei que tem 14 anos. Será que ele é um bandido? Ele já roubou? Talvez ele já tenha machucado alguém. Talvez não. Sei que ele caminha por ruas estreitas com casebres de salário mínimo durante a noite. E é de noite que as bestas dentro dos homens saem para caçar. Mas o jovem não sabe disso. Ele nunca acreditaria que o seu destino tomaria a via que tomou, nem mesmo se alguém que pudesse prever o futuro numa bola de cristal lhe dissesse. Essa noite vai ser tragicamente diferente para o desavisado. Um olho mecânico assiste a tudo, impotente é verdade, mas é testemunha implacável.

As bestas começam a vasculhar a rua; vão descendo casa por casa, quintal por quintal, rabo empinado, olhos atentos e focinhos em guarda. Farda decorosa para criaturas repugnantes, eles são a polícia que nunca na vida policiou. Eles se espalham enquanto farejam a rua sem saneamento, as criaturas desasseadas de mente insanável, decrépitas e antiéticas que vistoriam cada sombra e cada buraco. Espectros movidos pela raiva e pelo instinto, eles finalmente acham a trilha da presa, e em questão de minutos ela está cativa. São vários brutamontes portanto coletes a prova de bala, com revólveres nas cinturas, teflon e plástico, pólvora e projéteis; e apenas um jovem com 14 anos na cabeça e pouca carne no corpo, crimes ou não, inocente ou depravado, ao fim e ao cabo, apenas acuado. Eles envolvem o rapaz no perímetro de violência, com um muro às costas. De repente, todas as armas são retiradas de seus coldres e os olhos do rapaz, enquanto se enchem de lágrimas, ricocheteiam de pistola para pistola. 1, 2 , 3... E agora?

Empurram pra cá, empurram pra lá, você já assistiu à bullying na escola? Pois é, a situação é similar. Quem se importa com o garoto, ele está chorando só um pouco mais forte agora. Um dos diabos enfia o revólver no rosto do rapaz, como se ele precisasse de mais um lembrete da existência do aparato; como se ele pudesse se esquecer dela por um momento sequer. Subitamente, o diabo enfia a arma no coldre novamente. Esperança? Não depois que o flash iluminou a noite e o trovão alertou a vizinhança, que finge que dorme. Primeiro tiro, e a bala atravessou o rapaz e foi parar no muro. O rapaz se contorce de dor e tenta sair dali rápido. Os fardados assistem enquanto ele manca pra longe, deixando ele se afastar. Esperança? Não quando o ouvido do rapaz capta o som do trotar dos pés dos diabos, quem vêm correndo logo atrás. Rapidamente, a presa é alcançada de novo. Dessa vez, sem terror psicológico; outro fardado levanta seu canhão e põe ferro no pulmão do jovem. Oxigênio e sangue. O rapaz se contorce. Grita de dor e cai no chão. Viria então o tiro de misericórdia. Seco, sucinto e na cabeça. Mas outro fardado intervém com um tiro pra cima, ao que os outros olham assustados; eles não se entendem nem entre eles mesmos. Então, os malditos parecem concordar em levar o menino vivo. Eles o segurando pelo cotovelo, o levantam e o empurram pela rua, em direção à viatura. Em algum momento, quando o foco da filmagem se perde atrás de uma árvore, ouvimos um novo bang e mais um flash pode ser percebido; a presa tomou outro tiro de graça. Talvez porque ela não estivesse andando depressa o suficiente.

Então, os fardados empurram o rapaz pela calçada. As bestas movendo a carcaça. De vez em quando ele pára para vomitar sangue, mas quem se importa? Às vezes, ele simplesmente cai de joelhos no chão, as suas forças drenadas em poças no chão, ao longo do trajeto. Mas as bestas empurram e mandam andar. Andar. Andar. Andar. Em direção à uma existência mais sofrida, menos merecida.

Eu faço Direito para entender as coisas. Para poder discernir o certo do errado. Para poder pesar fatos e apresentar um parecer positivo. O vídeo que eu assisti mostra policiais militares torturando um jovem indefeso. O jovem, muito provavelmente um ladrãozinho, nunca revida. Os seus protestos são suas lágrimas e seus gritos de dor. Eu aprendi que quando um crime é cometido, ele é punido com uma sanção previamente aprovada. Mas a sociedade tenta nos ensinar, em momentos assim embrulhados pela noite, que na verdade os crimes são punidos com crimes piores, e que os seres humanos se jogam numa espiral de mútua degradação. Estardalhando no chiqueiro.
Outro dia um amigo meu disse que acha que a sociedade já alcançou um nível de desenvolvimento tão alto, tão diplomático, que ele questionou até a própria existência do Exército e das Forças Armadas para fim de situações de guerra e pacificação social. Eu revidei dizendo que, oras, aposto que em 1915 os homens também tinham essa sensação de modernidade, de segurança, e que isso não os impediu de atravessar 2 guerras mundiais. Aí ele redarguiu com um pouco de impaciência que, porra, os tempos são outros agora. Somos avançados.

Bem, um abraço forte para todos os que compartilham as ideias desse meu amigo, ok? Sensação de segurança é como aquele momento de torpor inexplicável que sentimos antes da lâmina cortar a nossa garganta: não serve para nada, é puro escapismo existencial.

Sabe aquele cantor do Restart babaca lá e o comentário famoso dele acerca da nossa região? Pois é, eu quero ir contra a corrente e concordar com ele. Não cara, nós realmente não temos civilização por aqui. Sério mesmo. A civilização morreu ainda no parto.