segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Loja de Bonecos

Este texto foi escrito e esquecido por mim em Abril de 2012. Achei-o hoje e decidi publicá-lo, mesmo sem final, por achá-lo interessante!

Essa loja de brinquedos é diferente. 
Os bonecos que ela vende, ela é que manufatura. Não sei que produção é essa, não sei que meticulosas mãos são essas que delineiam  e detalham  os produtos de forma tão insanamente perfeccionista. Os resultados finais são obras-primas tão íntegras, tão símiles, que o toque às mãos deixa emocionado qualquer que o ouse. Encostar nos bonecos é como encostar em pele real, talvez sinta-se até o calor por baixo dela. Seus olhos parecem emitir aquela luz dos olhos das coisas que vivem. Os cabelos estão lá, só falta crescerem, seus fios tão belos e naturais que muitos humanos se curvariam em inveja. Até seus lábios possuem uma maciez tentadora; tudo isso em bonecos de 10 cm de altura. A única coisa que denuncia sua artificialidade é um pequeno botão localizado naquela parte das costas que humano adulto algum consegue encostar com seus dedos. O que fazia o botão foi uma curiosidade que me consumiu desde o primeiro minuto em que os vi na vitrine.
Fascinado, comprei dois: um casalzinho. Levei-os para casa na sacola contagiado por uma emoção de difícil explicação. Ao chegar, coloquei-os numa cômoda larga; fiquei abismado ao notar o quão fácil era deixa-los de pé. Seus pezinhos formavam base perfeita que, combinada com o peso e a inclinação da coluna, sustentavam os bonecos quase como se assim eles desejassem. Observei-os por minutos a fio, tentando absorver cada detalhe, cada minúcia de seus corpinhos. O rapaz imitava perfeitamente um jovem entre seus 25 e 30 anos, com traços de barba, trajando blusa e jeans. A garota, não com menos perfeição, era uma mocinha de idade semelhante que portava um vestido azul. Decidi então descobrir finalmente o que fazia o botão; peguei o rapaz e pressionei o botão em suas costas. Fiquei então olhando sua face, esperando qualquer sinal de movimentação. Ele apenas continuou me olhando da mesma forma estática. Frustrado, coloquei-o de volta na cômoda, derrubando a mocinha de costas no processo.
Voltei-me e fui procurar a caixa da loja na sacola. Achando-a, tentei localizar seu número de telefone, pronto para soltar alguns palavrões ao dono, acusando-o de vender bonecos problemáticos. Lembrava-me bem que o senhor me prometera que os bonecos faziam algo simplesmente inacreditável quando pressionados seus botões. Mera baboseira, falsa propaganda para atrair os consumidores incautos como eu. Achando o número, peguei o telefone e disquei-o. No ato, virei-me novamente para encarar o produto defeituoso. A surpresa que tive fez com que eu derrubasse não apenas a caixa que eu segurava em uma mão como o telefone que eu segurava na outra; e a boca, fazendo sumir qualquer intenção de me utilizar de palavras feias.
Na mesa, o rapazinho de 10 cm de joelhos estava, ao lado da mocinha, e lhe sacudia os ombros. Falava-lhe baixinho, segurava suas mãos, tentava chamar-lhe atenção de toda forma. Suas pernas e seus membros em geral não possuíam articulações visíveis, mas até os dedinhos agora se dobravam, se abriam e se fechavam como se por baixo da camada suave de pele houvesse as mais complexas e minúsculas peças de engenharia. Sua boca se mexia deixando visualizar esporadicamente fileiras de dentes branquinhos. Logo percebi que o bonequinho não me notava ou era incapaz de me dar atenção, mesmo  que por vezes olhasse ao redor, como que procurando alguém que pudesse ajudar a outra bonequinha.
                Movido por uma sensação estranha de urgência, peguei a bonequinha de onde ela se encontrava. Notei que o boneco, por sua vez, ao que retirado o objeto de sua atenção  da frente de seus olhos, simplesmente permaneceu imóvel. Rapidamente pressionei o botão da bonequinha.  Olhei-a ainda em minhas mãos, sem saber o que esperar. Nenhum movimento. Depositei-a então onde antes estava, da mesma forma que havia lhe tirado. Vi então ela piscar os olhos e começar a se mover. Na mesma hora, o boneco que antes estava imóvel voltou a mover-se. Seus olhinhos diminutos se encontraram. A coisa mais estarrecedora aconteceu a seguir:
Os dois bonequinhos se abraçaram.

Levei as mãos à testa, sem conseguir acreditar no que meus olhos me ofereciam.
                                      (Não lembro por que não dei prosseguimento!)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Resenha literária: "A visita cruel do tempo"


Resenha: “A visita cruel do tempo”/ “A visit from the goon squad”, de Jennifer Egan

O ramo da música está decaindo, mas não é por causa da internet. Pelo menos de acordo com o livro “A visita cruel do tempo”, de Jennifer Egan, a culpa real deste fato é a notória ausência de talento da nova geração de artistas. Não que o seu interesse neste tema seja essencial para que você se apaixone por essa espetacular obra; apesar de ser um dos temas do livro, ele não é, nem de longe, o seu fio de meada. Não: ele, como todas as outras estórias do romance, são apenas formas que a autora utilizou para abordar o tópico real: a passagem do tempo.

                Centrado num conjunto de personagens vagamente conectados (alguns mais do que outros), o livro é contado através de 13 capítulos, sendo o foco interpretativo de cada um centrado em personagens distintos. A estória se passa no decorrer de 40 anos, e prioritariamente na cidade de Nova York. Comumente, cada personagem narrado já foi apresentado anteriormente através dos olhos de outro personagem. O interessante é que sempre que essas personagens são apresentadas pela primeira vez, elas estão em algum ponto confortável de suas vidas; quando o livro decide que é a sua vez de tomar o centro, entretanto, comumente somos levados a um momento turbulento de suas vidas. Não que isto seja uma regra primordial, ou que sempre que acompanhamos alguém, este encontra-se na mais miserável situação de sua vida, não. Mas indubitavelmente, ressalta-se o interesse da autora em aproveitar os conflitos mais significativos de cada um, ao mesmo tempo que assegura-se ao leitor o proveito de uma narrativa bem sincronizada e no ritmo ideal. Quiçá haja leve tropeço no desenvolvimento do último capítulo, que é de longe o mais fictício (tendo em vista que se passa numa Nova York do futuro), isto pode facilmente ser perdoado com o desfecho emocionante da estória.

                Aliás, há no livro um capítulo narrado exclusivamente através de slides Power Point; sim, este instrumento moderno que é, de outro modo, um recurso chato utilizado por gente chata para apresentar conteúdos ainda mais chatos, aqui é posto em ação para contar esclarecer certas dificuldades familiares de uma forma extremamente inocente, tocante e memorável. Aliás, vale dizer: este capítulo em particular ajudou a cercar o livro de um buzz espetacular, atiçando a curiosidade de leitores e críticos em comum.

                Jennifer Egan é brilhante. Sua narrativa, no mais das vezes, segue o estilo de terceira pessoa. Mas capítulos há em que a narrativa é em primeira pessoa. Há um capítulo, inclusive, em que ela narra VOCÊ! Isso mesmo! Narrando as desventuras de Robb, ela trata o personagem por “você”. Isto saltou-me aos olhos de forma agradável e acendeu-me uma curiosidade literária bem forte, coisa que certamente se passou com todos os outros que dedicaram ao fato alguma consideração. Como se vê, a autora não tem medo de esbanjar seu talento, e as narrativas são sempre eficiente e obedecem a um propósito: seja aproximar, seja distanciar quem lê das ações e sentimentos de quem é descrito. Super eficiente é esta artimanha, até mesmo para ajudar o leitor a se apaixonar por Sasha Blake, que, juntamente a Bennie Salazar, são as duas personagens mais bem exploradas pela obra.

                Todas as personagens são ligadas de alguma forma à indústria da música: produtores, assistentes de produtores, músicos, RP’s, jornalistas... Não impossivelmente, atribuo isto ao desejo da autora de imiscuir sua obra com um profundo conteúdo pop, de modo a localizá-la bem num ramo prático, comum e que definitivamente vêm ele próprio recebendo uma cruel visita do tempo.

                “A visita cruel do tempo” recebeu o Pulitzer de 2011, e é uma das melhores obras que eu já li. Fortemente recomendo sua leitura, tanto àqueles que gostam de livros descomplicados quanto àqueles que preferem algo engajado. Não conheço os livros anteriores de Jennifer (o que pretendo remediar nos próximos meses), mas se eu fosse um homem de apostas, apostaria isto: guarde este nome, pois dentro em alguns anos ele será muito reconhecido. Aliás, Egan já foi listada pela Times como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo no ano de lançamento deste livro, mas o que eu quero dizer é que o reconhecimento que ela já tem pouco se compara ao que ela alcançará, simplesmente porque ela é dotada de um talento maduro e acachapante que, se bem explorado, gerará obras que definem gerações; como esta em especial já fez.

               

               

 

sábado, 16 de novembro de 2013

Miles Scott, o Batman e outras histórias espetaculares

           O Batman é real.

           Eu sempre tive minhas suspeitas, sabe? Mas agora eu tenho certeza. E ao final deste artigo, você vai ter também.

           Miles Scott, natural de Tulelake, na California, é uma criança de 5 anos com leucemia. O diagnóstico aconteceu quando o pequeno tinha apenas 1 ano e 6 meses de vida, e desde então ele vêm batalhando a doença; pode-se dizer que ele passou, de fato, a maior parte de sua vida em hospitais e em consultórios, tomando remédios e fazendo quimioterapia, não podendo brincar e não podendo aproveitar sua saúde. Recentemente, entretanto, a doença entrou em remissão, que é um estado em que ela fica assintomática. Sendo este o escopo de todo o tratamento, considera-se que o pequeno Miles “venceu” sua batalha.
Tomando conhecimento da sofrida história de vida de Miles, a fundação Make-a-Wish foi até ele e perguntou-lhe qual era o seu maior desejo. A coisa com que ele mais sonhava, seu desejo abstrato mais louco. Ele disse apenas que, oras, queria ser o Batman. É bem o tipo de coisa que uma criança de 5 anos diria, não?

           Ué, sem problemas, disse a Make-a-Wish. A fundação rapidamente iniciou um projeto ambicioso, contatando as autoridades da cidade de San Francisco, que é a principal cidade do norte da Califórnia, e espalhando seus planos na internet. Os planos eram “simples”: por um dia, San Francisco seria Gotham City, o pequeno Miles seria o Batman, e ele combateria o crime a pedido do comissário de polícia da cidade. Logo a ideia da fundação se espalhou e os internautas começaram a demonstrar seu suporte: Miles virou sensação nas redes sociais e o plano de transformar San Francisco em Gotham conseguiu 12 mil voluntários.
Tudo veio à fruição ontem (15/11), quando Miles foi conduzido a San Francisco sob o pretexto de ir receber uma bela fantasia do Cavaleiro das Trevas. Chegando à cidade, foi surpreendido com a bela verdade dos planos. Lá, além de receber a prometida fantasia, participou de um circuito bem elaborado que envolvia passear pela cidade num Lamborghini pintado de Batmóvel, conduzido por um dublê do próprio Batman, enquanto vivia simulações que envolveram capturar o supervilão “Charada” no meio de um assalto a banco, assim como salvar o mascote da cidade das mãos do “Penguim”, no meio do estádio municipal. Ao final de suas missões, o jovem foi recebido pelo prefeito numa cerimônia pública, onde recebeu a Chave da Cidade. O tempo todo o “Batkid” (como foi oficialmente apelidado) foi seguido por milhares de espectadores, que gritavam pelo seu nome e torciam por ele.


Poxa, eu já ia ficar feliz só de passear num Lamburghini...
Miles e a chave da cidade
           Esse conto verídico trata, como se constata, da beleza do altruísmo humano. O jovem Miles, ainda em tenra idade, tem como herói e inspiração uma figura oriunda das histórias em quadrinho. O que ele não sabe é o valor de sua vitória: a conquista de uma das doenças mais cruéis pelo ser humano em seu estado mais frágil e inocente; esse tipo de história ressoa no coração de qualquer um, simplesmente porque sabemos que a infância é um momento ímpar no desenvolvimento do homem, tanto pela sua fragilidade quanto pela sua fugacidade e sua magia.


           Miles arrastou-se pelas veredas de sua guerra contra a leucemia movido, dentre outras coisas, em grande parte pela admiração por seu super-herói favorito. Batman, em muitos aspectos, salvou sua vida. Digo isto sem querer, logicamente, atentar contra a importância factual do apoio familiar e médico da criança, mas com o objetivo de ressaltar o lado mais introspectivo do assunto. O Cavaleiro das Trevas ajudou Miles a esquecer da anemia, dos inchaços, das hemorragias, da fatiga, das náuseas, das dores, das constipações, das mudanças nervosas, das mudanças na memória, e dos muitos outros sintomas da Quimioterapia, e fê-lo encontrar força, fé e um motivo para não desistir da vida simplesmente por ser uma das suas fontes de inspiração. E no final, tudo o que Miles queria era poder viver um pouco das aventuras do Homem Morcego, apenas porque acha que elas é que são aventuras espetaculares. Enquanto isto, os milhares de espectadores que foram prestigiá-lo estavam lá para conhecer outro tipo de super herói, e conhecer um outro tipo de aventura totalmente diferente, um tipo mais maduro, mais plausível e muito, mas muito mais espetacular: a aventura de uma criança que sobreviveu a uma doença implacável.

           Porque vencer o Coringa de vez em quando é incrível sim, mas vencer a Leucemia antes de se aprender a atravessar a rua sozinho... Isto sim, caro leitor, é heroico.

           E se Miles diz que o Batman realmente o ajudou, não creio haver argumentos lógicos o suficiente em lugar algum que me façam duvidar de sua existência. Desejo inclusive que o Batman também esteja lá para todas as outras crianças que precisem de sua ajuda, como Miles Scott precisou. 

sábado, 28 de setembro de 2013

1.1. Angie


Era um dia quente em meados de novembro. Angie  apertava com força o cabo de sua grossa espada de aço – embainhada -  com uma das mãos, enquanto com a outra afastava seus cabelos castanhos ensopados de suor da testa. Seu olhar se perdia em algum ponto elevado. Ela usava uma completa armadura de ferro, pesada e resistente, que infelizmente fazia o calor natural crescer em progressão alarmante. Do jeito que estava suando, Angie começava a temer uma desidratação.
- E então, capitã? – perguntou Howard, seu segundo em comando. Howard era um homem com sobrancelhas grossas, pele morena queimada de sol e com um semblante que fazia extrapolarem os palpites acerca de sua idade. Howard estava, igual sua capitã, trajando uma armadura completa, só que lhe faltava a peça do ombro direito. À frente deles, uma grande e íngreme montanha erguia-se até onde a visão da pequena infantaria liderada por Angie conseguia escalar.
Boatos haviam se espalhado pela alta sociedade do reino de que os (poucos) remanescentes da família Morcerick poderiam estar usando a montanha como esconderijo. Motivados pelo sentimento de vingança, a alta corte pressionou o rei Fidelis para que ele mandasse uma infantaria para enterrar até o último membro da família Morcerick, responsável por uma grande traição na década anterior que culminara com uma tentativa fracassada de assassinato do rei, mas que por vias indiretas provocou a morte de seu filho.
Angie ainda tremia quando voltava à sua memória  aquele sentimento que lhe preenchera o peito quando  descobriu a morte do jovem príncipe. Retornava às terras do castelo após um excelente dia de caça para descobrir seu o corpo gelado de seu irmão desfalecido em seus aposentos. Ela gritara e gritara, por meio das lágrimas, até que alguém finalmente apareceu e a afastou do corpo frio. Seu pai, o rei, veio a passos pesados pelos corredores e entrou no quarto acompanhado por 20 soldados armados. Ele olhou impassível o cadáver, e depois seus olhos se concentraram na filha remanescente. Ele tomou sua mão e murmurou palavras doces para que ela ouvisse. Em seguida, rapidamente tomou o caminho da saída do quarto. Angie sentiu o próprio coração cair dentro de sua caixa torácica, olhando do corpo do irmão para o pai que se afastava. Levantou-se num impulso e gritou:
- És mais frio que o corpo agora eternamente imóvel de teu filho, pai! – O rei e sua comitiva estancaram, mas ele não virou o rosto para encarar a filha. Os outros servos presentes nos aposentos a olhavam com tanta pena em suas faces que ela não conseguiu se conter, deixando fluir a necessidade de se expor ainda mais. “O teu filho jaz no chão de rocha nua trajando nada mais que os robes os mais caseiros, dentro da casa que é nossa e dentro do cerne de nossa segurança, claramente vitimado por aqueles que não desejam o teu bem, pai, e tu dás as costas e vais embora? Não tens coração? Não sequer te aproximas  do corpo uma última vez? Que pai é esse?”- ela lutava para terminar as sentenças, pois estava agora aos prantos.
O rei virou o rosto apenas para observá-la, mas logo em seguida deu-lhe as costas, entrou pelo corredor e sumiu de vista, acompanhado de perto pela sua guarda real.
- Devo esperar eu o mesmo tratamento se algum dia encontrarem meus restos expostos e dilacerados n’alguma trincheira afundada enquanto travamos os combates de nosso reino? É isso pai? É ISSO? – ela gritava, e por um momento tentou correr pela porta para alcançar o pai, para fazer sabe-se-lá-o-quê, mas rapidamente 3 soldados atrapalharam seu intento.
Quando levaram o cadáver para a ala hospitalar do castelo, sangue começou a vazar por todos os orifícios do seu corpo. Angie assistiu horrorizada enquanto os robes brancos do irmão iam mudando de cor ao se misturarem com o escarlate de seu sangue. Naquela noite, Angie fugiu do castelo e passou os dois dias e duas noites seguintes perambulando pelas terras próximas, matando animais selvagens e se alimentando apenas do que conseguia manufaturar. Durante o tempo todo, não disse palavra.
Eventualmente vir-se-ia a saber que a causa da morte fora envenenamento; um veneno tão forte e aplicado em tanta quantidade no alimento que após matar o jovem príncipe, começara a derreter seus intestinos. O alimento envenenado havia sido uma cesta de sortes dada por um terceiro comandado pela família Morcerick; isto não foi, entretanto, descoberto com facilidade. Um ano de inquérito se seguiu a essa noite, e houve várias prisões. Infelizmente para a família Morcerick, Angie supervisionara aquele inquérito como se fosse a última coisa que faria. Ela própria sofrera um atentado similar, mas mal sabiam o perpetrantes do atentado que Angie agora só comia aquilo cuja produção e preparo ela supervisionava; que, por sua vez, muito frequentemente consistia daquilo que ela mesma caçava. Um servo acabou falecendo após furtar a tal cesta, e enquanto os guardas reais conduziam Angie pelas vielas da cidade-estado, ela já ruminava suspeitas que apenas se confirmaram quando seus olhos encontraram o corpo imóvel do servo na poça rubra de sangue e colcha que se tornara sua cama. A mulher do rapaz chorava aos soluços enquanto Angie observava a cena, sentindo uma chama ferver seu interior.
Dessa vez, entretanto, Angie estava preparada. Ela tinha seus próprios informantes circulando pelo castelo, infiltrados entre os servos e prontos para conduzir qualquer situação suspeita de forma profissional, atenta e com tanta naturalidade que, após o atentado fracassado, Angie não precisou mais do que conversar com seu informante-chefe para obter uma reconstituição fiel da proveniência da cesta e de quem a havia trazido. A partir daí, o inquérito não tardou mais do que algumas semanas até apontar Matteus Morcerick, o filho mais velho da família, como principal responsável pelo envio dos alimentos envenenados. Com pouco tempo ela conseguiu a ordem real e encaminhou-se com a guarda até a residência da família, onde ela coordenou uma grande matança. As crianças foram separadas de seus pais e enviadas para longe do reino, enquanto os adultos foram esquartejados e suas cabeças postas à mostra nos portões da cidade.
Num contorno triste do destino, no dia em que Angie carregara as ordens do pai, alguns membros da família estavam ausentes em viagem; um deles, claro, era Matteus Morcerick. Desnecessário dizer que desse dia em diante, nunca mais se ouviu falar de nenhum deles.
Até recentemente.
Angie olhava para o cume da montanha, imaginando como que conseguiria subir aquilo. Era muito íngreme; uma pessoa normal jamais conseguiria. Talvez alguém mais treinado e com menos equipamento de guerra, conseguisse; mas ninguém na sua infantaria obteria sucesso.
O que Angie precisava era de... magia. E ela sabia exatamente onde conseguir.
De repente, o celular de Angie começou a tocar, interrompendo a música que saía de seus fones de ouvido.

...

Era seu pai, perguntando onde diabos ela estava e por que ela não tinha aparecido na aula de francês. Ela explicou que tinha finalmente descoberto o endereço do idiota que havia envenenado a ração de Toddie, e que o sujeito morava num condomínio luxuoso no centro da cidade.
- Ah, Ângela... Eu te disse para esquecer isso...- disse seu pai, com um pouco de tristeza na voz. “Eu vou aí te pegar”.
Mas Angie não lhe deu atenção. Logo após a ligação ser desligada, a música voltou a sair pelos seus fones de ouvido e ela já estava na armadura novamente, olhando para o prédio e imaginando como diabos faria para entrar.
Afinal, não era surpresa nenhuma que o rei Fidelis, após anos de aguda paranóia, em toda a sua precaução exagerada, houvesse proibido quaisquer atos de perseguição aos Morcerick. Angie estava ali por conta própria, com os poucos homens que decidiram lutar por sua causa.

...

Entrando no carro, o pai de Angie deu a ignição enquanto murmurava impropérios. Desde que o cachorro de sua filha havia morrido, ela estava em polvorosa. Não que a imaginação de sua filha necessitasse de muito estímulo para abrir asas e decolar, mas deste então a garota ficara em estado quase catatônico. Ia para a escola, voltava, almoçava rapidamente e logo trancava-se no quarto para jogar vídeo games, assistir suas séries, ler seus livros e ouvir sua música. Se em algum momento saía, estava com fones de ouvido e olhos tão distantes da realidade que o resto da família era capaz de passar despercebido. Aliás, a última vez que ela tivera algum contato real com o pai foi para dar-lhe um carão por não se importar mais com o falecimento do animal.
A situação só fez piorar quando, alguns dias depois, Ângela viu acontecer o mesmo com o cachorro do vizinho do outro lado da rua. Aí que a jovem ficou ainda mais reservada, não saindo do quarto senão para ir à escola e a seus cursos.
Aliás, ele não conseguia imaginar qual seria a reação da filha se ela descobrisse quais eventos realmente levaram ao falecimento dos pobres animais. 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Concursos Públicos nas nossas vidas

Domingo agora, dia 25 de Agosto, é a prova do concurso público do Ministério Público do Amazonas, e eu gostaria de mandar um alô para os guerreiros que vão fazê-la. Parece que foi ontem que eu estava numa luta idêntica para me preparar para o concurso do Tribunal de Justiça, então eu me vejo obrigado a escrever algumas palavras para os desafiantes dessa próxima grande peleja.
Pra quem não sabe, concurso público é um dos eventos mais disputados do país em questão de mercado de trabalho. É quando os interessados em ingressar na carreira de servidor público veem a oportunidade de finalmente ascender àquele tão sonhado emprego de boa carga horária e boa remuneração, além de prestigioso e estável. E é quando esses mesmos interessados se veem esmagados por editais com conteúdos programáticos simplesmente quilométricos, esperando para matar ou morrer, numa corrida que mais parece impossível do que plausível. E como se as provas já não exigissem bastante do candidato, ainda tem a concorrência: vêm gente do país todo pra sua região, atraídos pelo odor da oportunidade. Gente que você não conhece, gente que pode ter se preparado melhor que você, gente que está apostando mais alto que você... Inimigos mais do que letais.
Eu sei como é essa tensão pré-concurso. Eu agora estou falando com a galera que, como eu no concurso anterior, não tem vergonha de admitir que se preparou, que está com as fichas na mesa e apostando alto.
Foram meses e meses estudando, né? Tanta coisa que vocês deixaram de fazer. Tanta vida social e tanta juventude deixada de lado, sonhando com o momento em que vocês finalmente vão poder voltar para casa e dizer para os pais de vocês “Ei gente, eu conquistei um pedacinho do mundo, sabiam? Eu existo. Eu faço acontecer!”. Mas lembrem-se que é um olho no prêmio e um olho no treinamento, o tempo todo.
Primeiramente, não se permitam sentir na mente de vocês que vocês já pertencem ao lugar onde querem entrar. Nada de se materializar aprovados, jamais. Enquanto vocês se virem como o estrangeiro faminto olhando pela janela, vocês vão poder focar em se preparar para derrubar a porta que os separa do calor e do aconchego que há lá dentro. Não se permitam sonhar muito e morrer de hipotermia lá fora, sozinhos e no escuro da noite.
Segundo, garra. Gente, sério, vocês já se imaginaram lutadores? Lutadores como aqueles que a gente vê na TV, no MMA e no Boxe? Não? Porque se não, tá na hora. Aqueles caras acordam e tem o cronograma do dia todo programado. 8 AM, Jiu Jitsu, 11 AM, Muay Thay, 13 PM, almoço... E vocês? 8 AM, Constitucional, 11 AM, Administrativo, 15 PM, resolução de questões... Vocês acham que eu estou brincando? Que eu estou me deixando carregar pelas minhas palavras? Não, eu estou falando de uma situação real, de um cotidiano tão real que cria marcas. Quem aqui nunca sacrificou o bem estar físico na busca por esses sonhos de aprovação? Quem aqui não teve que se virar um cronograma desses? Quem nunca ficou realmente doente nessa corrida? Eu sei que eu tive de tudo: enxaquecas, dores nas costas, pelo corpo todo, enjoos e até um princípio de gastrite. E é aí que entra a Garra: é a vontade de conquista, de disciplina e determinação mesmo em face da decepção. Meu deus, e as questões que você faz e erra? O tempo todo! As provas anteriores que você refaz e refaz e ainda assim não consegue acertar uma quantidade satisfatória de questões!
Já passei por isso. Já me frustrei muito, já me deixei desesperar. Já atirei todo o material de estudo no chão tantas vezes, já até quebrei canetas com as mãos em momentos de raiva (2 vezes). Uma vez fiquei tão estressado com o meu desempenho que fui dormir 7 horas da noite, porque não conseguia mais me concentrar. Mas aí, você, colega que se dedica também, sabe o que acontece. Nós, eu e você, acordamos no dia seguinte, limpamos a mente e voltamos pro treino. Mais uma sessão de sparing, vamos lá. Refazer aquela prova (de novo e de novo). Tudo de novo, do início. Garra! Cada gota de suor agora é uma lágrima a menos no futuro.
Terceiro, e talvez mais importante: aceite que você pode não ser aprovado, perder tudo. Perder é sempre uma opção, como já diz um certo lutador norte-americano. Derrota é, na verdade, a mais imediata e valorosa, em termos de custo-benefício, opção que há. Você pode não aceitar o risco. Você dizer “Ah, deixa pra lá”. Convencer-se de que aquilo não é pra você. Você pode aceitar o seu lugar como aquela pessoa que anda por aí, feliz em poder dizer “Não passei, mas também nem estudei”. Como se isso valesse os dois centavos furados do seu bolso. Como se houvesse alguma hipótese em que “não estudar” te ganhou alguma coisa. Como se você estivesse mais próximo dos seus sonhos agora. Novidades: você não passou. Isso é chato. Mas você não se dedicou? ISSO é idiota. Isso é falta de previdência. É impossível achar alguém que tenha se danado mais por isso do que... você. Se você não vai passar, que seja estudando. Sério, estude mesmo. Entre na linha de frente: só ganha alto quem aposta alto. Não passou? Tem um próximo. E adivinha: você já tá na vantagem se você se dedicou antes.
E mais uma vez eu friso: nada de se colocar num lugar em que você não está. Nada de dizer que já passou sem nem ter feito a prova. Nada de fazer planos ou promessas, porque o sofrimento desse tipo de fracasso é muito próximo ao insuportável, e provavelmente vai te desestabilizar e desmotivar pelos concursos seguintes. Pode parecer insano, mas é importante que vocês lembrem que uma coisa que vocês nunca tiveram não deve atrapalhar vocês em conseguir outras, possivelmente até melhores que a que vocês deixaram passar!
A vida é assim, altos e baixos. O que fica é o seu coração e a sua preparação. Estejam sempre prontos! O sucesso não vem aos que dormem. Quando sentarem-se na cadeira de prova no dia do concurso, apreciem por um momento as folhas a sua frente. Sem abri-la! Apenas observe-a. Pense no quanto você batalhou para estar ali. Pense em como você merece gabaritar aquela maldita. De repente, lembre-se: aquela prova, aquela desgraçada ali na sua frente, a uma palma de distância depois de meses evadindo e prometendo desafios, ela é vai ser a melhor coisa que já te aconteceu. Ela é a sua melhor amiga, ela é o seu amor. Sabe por quê? Porque ela é o seu trabalho. Ela é a sua chance de mostrar o que você veio provar. Ela é tudo o que você queria. De repente, ela não é mais assustadora. Ela não é maligna. Ela é só as suas próximas 4 horas. Depois você vai pra casa, comemorar, de preferência.
Eu sei que eu fiz isso.
Então, basicamente é isso. Muita boa sorte aos meus queridos que vão prestar o concurso e que tem no coração a certeza de que fizeram tudo o que puderam para se preparar. Lembrem-se, o prêmio de Nocaute ou Submissão da Noite é pra pouquíssima gente, mas o prêmio de Luta da Noite tá só esperando você, que se dedicou que nem um louco pra conseguir o que quer!
Rumo ao MP, galera!

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Vocês querem falar Revolução? Vamos falar Revolução.


Esse movimento-protesto tem ganhado muita força e chamado atenção em âmbito nacional, o que eu acho interessante. O Brasil tem de fato ido às ruas para levantar a clava forte; todo dia vemos notícias de mais e mais protestos com mais e mais gente e até mesmo mais e mais violência.
E isso, diga-se de passagem, mesmo sem o apoio da mídia de massa. A Rede Globo finalmente está expondo a tirana que é, negando firmemente todo o conteúdo dos protestos, fazendo o que pode para desvirtuá-lo, ajudando assim o público em geral a enxergar a farsa manipuladora que ela é e que sempre foi.
Mas então, eu estava aqui pensando em participar do ato de quinta-feira  e percebi que não sei o que escrever no meu piquete. Isso mesmo, não sei quais palavras erguer sobre a cabeça lá, no meio da confusão. Pelo que esses protestos querem ser lembrados?
Não me entendam mal, minha mente é tão revolucionária quanto se pode conceber. Quem me conhece sabe o que penso dos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo), sabe o que penso do responsável pela aniquilação da democracia nestes últimos anos (PT), sabe o que penso de um monte de coisas. Você quer falar em revolta? Acredite, eu sei falar em revolta.
Aí chego num impasse: sobre o que estamos protestando? Claramente não é por causa dos 20 centavos, então não colocarei isso. Todo bom escritor sabe o tópico de seu texto, tanto quanto todo bom revoltado sabe o motivo de sua insatisfação. Os motivos mais nobres que vejo são o combate aos infamosos projetos de lei (PEC 33, PEC 37, etc...), mas paremos para refletir:
Povo, vocês sabem o que é um projeto de lei? Pois é. Projeto de lei é o que cada político legislativo faz todo santo dia no Congresso. Existem MILHARES deles, e esses poucos que nos ultrajam são uns dos poucos que ouvimos falar. E detalhe: se um projeto de lei é descartado este ano, ele pode ser proposto novamente na próxima sessão legislativa, isto é, ANO QUE VEM.
Se eu botasse nominalmente “PEC 33, PEC 37, etc” no meu piquete, eu me sentiria um belo idiota. É como tampar o sol com a peneira, é como tentar conter o fluxo de um rio com duas colheres de chá. É imbecil. Então, com certeza não é isso que vou botar no cartaz. E aí, sobra o quê? De repente, não me parece mais uma boa ideia para as ruas. Não para conferir o meu aval a este movimento.
Vocês querem saber o que eu quero? Porque eu tenho ideias, sim senhor. Eu sei muito bem o que fede nesse país. Eu sei muito bem  o motivo pelo qual me ultrajo todo dia quando leio notícias políticas. Eu sei o que está impedindo este país de ir para frente. Eu sei.
Vocês querem fazer esse movimento valer a pena? Então sabe o que eu exigira? CABEÇAS.

Sim, CABEÇAS. Cansei de pedir migalhas para receber farelos. 

CABEÇAS no aspecto político da coisa. Eu exigiria a PERDA DOS DIREITOS POLÍTICOS da GRANDE MAIORIA DAS PESSOAS QUE VOCÊS MESMOS BOTARAM NO SENADO FEDERAL, NA CÂMARA DOS DEPUTADOS E NA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Vocês querem falar Revolução? Falemos Revolução. Impeachment da PresidentA Dilma no dia 1. Rebenta arrebentada e ilegitimada do Lula e do PT, ela não vale as roupas que veste. É a maior evidência do controle irracional e tirânico que o partido exerce sobre esta população de idiotas. Deve ser a primeira coisa a partir. SEGUNDO? Julgamento do Lula pelo seu envolvimento no mensalão e em outros escândalos. JOGUEM O DITADOR NO FOSSO. Deem-no ao STF, pois o STF sabe o que fazer com gente corrupta. Terceiro dia? Congresso Nacional. Vamos retirar do Legislativo toda a podridão intelectual que lá existe. Quero perda do direito político de quase todo mundo que está lá, principalmente dos filhos da puta da bancada evangélica, que ultimamente tem tentado meter o dedo em todos os orifícios políticos e judiciais desse país. Porque, se vocês não querem mais ver projetos de lei IDIOTAS E RETRÓGRADOS, retirem do poder gente IDIOTA E RETRÓGRADA.
PAREM DE PENSAR PEQUENO. NÃO É SOBRE 20 CENTAVOS, É SOBRE FAZER O QUE É CERTO PARA O PAÍS. NÃO É ISSO QUE VOCÊS FALAM? NÃO É ISSO QUE VOCÊS QUEREM? POIS VOCÊS PODEM AUFERIR O QUE DESEJAM, POIS VOCÊS SÃO O POVO.

REVOLUÇÃO? REFORMA POLÍTICA. HOJE. AGORA. PERDA DOS DIREITOS POLÍTICOS.

COMEÇAR DE NOVO, COMEÇAR BEM. 

terça-feira, 26 de março de 2013

Jim Carrey e a impopularidade


Jim Carrey sempre foi um ator popular, mas dessa vez ele se meteu na linha de fogo de metade da população americana. E da metade que realmente tem porte de arma...

Ontem, o ator publicou no site FunnyOrDie um vídeo de sua autoria e com sua atuação e cantoria com um objetivo muito simples: atacar o direito nacional (e polêmico) vigente no país que permite a comercialização pouco criteriosa de armas de fogo.

Como tópico frasal do vídeo, Jim Carrey satiriza Charlton Heston, ator falecido e histórico na cinematografia americana. O ator era conhecido pela sua ligação à armas de fogo, e no vídeo Jim Carrey chega a mencionar que ele não teria conseguido entrar no céu, pois não houve anjo que conseguisse lhe tirar os revólveres (uHAUAHUA). Usando a figura como porta de entrada na mente dos amantes das armas, Carrey procura passar uma mensagem.

Infelizmente, a população americana que aprecia a faculdade de ter ou não porte de arma, que é a maioria do país, não gostou nem um pouco da iniciativa do ator e tem retaliado bastante. O ator tem sido bombardeado no Twitter e no You Tube com mensagens-respostas pouco agradáveis. Ele, sempre de bom humor, apenas enfatiza que tem direito à opinião. 

Eu demorei a conseguir achar o vídeo, mas vou logo publicar para vocês terem uma opinião própria. Confesso desde já que gostei do curta, achei engraçado e apreciei a crítica social por trás dele. Não vou julgar a opinião do Jim Carrey, já que não moro nos EUA e nunca vivi seu estilo de vida. Mas de uma coisa eu sei: como é bom ver o comediante de volta.

Jim Carrey começou sua carreira como comediante stand-up, o que pude prestigiar apenas recentemente através de vídeos antigos postados no You Tube. Inútil dizer que o cara era talentoso demais, né? Infelizmente, nos últimos anos o comediante por trás do ator sumiu, enquanto ele se dedicou a produzir longas que, bons ou ruins, nada tinham a ver com o seu humor ácido de início de carreira. Agora, ele retorna à forma com esse excelente vídeo que explora tudo que o deixou famoso: ideias malucas, boas piadas, aptidão física para caretas e sonoplastias e conteúdo cômico.

Para mim, o humor tem que ser assim mesmo: audacioso, desbravador. E vocês, o que acham?

http://www.funnyordie.com/videos/0433b30576/cold-dead-hand-with-jim-carrey

sábado, 9 de março de 2013

Coração de Lutador, parte 3.

                                                     Subtítulo: Mudança nas regras
 37 anos tinham chegado e partido.
O coração do Médico estava acelerado quando os seus pés desceram do carro ao chão. A casa à sua frente era exuberante, fiel rebento da bela arquitetura. Não chegava a ser a mansão que ele imaginava, mas o bom gosto não se mede em metros quadrados. O motorista que lhe levara ali logo se adiantou para conduzi-lo à porta da frente.
Dentro da casa, uma senhora que trabalhava era a única pessoa à vista. Na sala onde o Médico foi deixado para esperar, retratos de família e pôsteres de outros tempos adornavam mesas e paredes. Metade dos pôsteres mostrava o dono da casa nos tempos em que ainda lutava, e o Médico sabia identificar todos os eventos.
Muitos anos no passado, apesar de não gostar de MMA, o Médico forneceu seus serviços em um evento de lutas, e foi o suficiente para modificar sua opinião sobre o esporte. Logo na sua primeira intervenção, o Médico tomara uma decisão em relação ao diagnóstico de um lutador que acabara evitando que o seu oponente, que era o favorito, ganhasse. O Dono desse evento dissera que tomaria as providências para que ele nunca mais fosse convocado para diagnosticar lutadores novamente, e assim o fez. O médico não mentiria se dissesse que aquilo pouco lhe importara; na verdade, aceitara a oportunidade apenas para prestar favor a um colega e não chegara a pretender tornar aquilo profissão. O que importou de fato foi o efeito que aquilo lhe causou: entrara no octógono pela primeira vez um crítico do esporte, saíra amante. Daquele dia em diante, acompanhou todas as lutas de artes marciais de que teve oportunidade. E era por isso que conseguia nomear cada uma das lutas ali representadas, seu ano, seus vencedores e outros detalhes técnicos.
- Vejo que minha coleção pessoal lhe agrada, doutor. – uma voz de repente deu vida ao ambiente em volta do Médico, que não conseguiu conter a empolgação .
Aquele por quem o Médico quebrara as regras médicas, e que posteriormente o  mundo consagrou como “O Lutador Paciente”, estava ali, bem na sua frente, como apenas uma única vez esteve antes, 37 anos atrás. E o Médico ficou chocado.
Há tempos não se via fotos do Lutador. Aposentado aos 42 anos, o lutador abraçou o ostracismo não muito tempo depois. Não saía mais de casa, e quando o fazia tomava as precauções para não ser capturado pelo olhar ou câmera de ninguém. Não se sabia explicar por quê. A fama em excesso havia lhe exaurido, diziam. O Médico, aliás, pessoalmente, sempre acreditara nesta teoria.
Responsável em grande parte pela popularização do MMA como esporte, o Lutador Paciente foi erguido ao status de ídolo mundial. Dono de uma personalidade magnética que encantava qualquer um, junto com uma qualidade sem precedentes nas artes marciais, o Lutador foi explorado em excesso pela mídia. Alvo das grandes revistas e das grandes manchetes por anos, ele parecia dificilmente obter sossego. O interessante é que, apesar de tudo, de onde quer que se olhasse, ele manteve uma conduta exemplar. Nunca fora sequer parado por dirigir alcoolizado. A dedicação ao esporte, por sua vez, era perceptível a qualquer um que assistisse lutas suas em sequência; as melhoras eram sempre evidentes. Após a vitória na noite em que o Médico evitara que ele fosse impedido de lutar, o Lutador Paciente precisou vencer mais três lutas para conseguir a disputa pelo título, empreitada em que foi igualmente bem sucedido. A luta aconteceu em 2 anos no evento, e o Paciente contava então 25 anos de idade.
Deteve o cinturão dos médios durante 11 anos, estabelecendo um recorde folgado. Durante seu sexto ano de reinado, ele subiu à categoria dos meio-pesados, em desafio ao campeão desta, e o venceu, tornando-se detentor de 2 cinturões, que manteve por mais 4 anos.
Até que sofreu sua primeira derrota na organização, na sua 4ª defesa de cinturão nos meio-pesados. Com 35 anos, seus reflexos começaram a minguar. Conseguiu defender o cinturão de sua categoria original, os médios, mais uma vez. Logo em seguida, perdeu-a também. Despido de ambos os títulos, e apesar das especulações da mídia acerca de sua aposentadoria, o Lutador procurou se recuperar e obteve mais algumas vitórias para disputar novamente contra o campeão, angariando no caminho prêmios diversos, inclusive pelas melhores lutas de 3 anos consecutivos. Não obstante, nunca mais conseguiu reaver título algum; a pontuação dos juízes sempre frustrava suas empreitadas.
Até que, na 2ª tentativa de reaver o título dos meio-pesados, o Lutador Paciente sucumbiu a um soco direto seguido por uma avalanche de marteladas na cabeça durante o terceiro round, sofrendo o primeiro nocaute de sua carreira. Foi, indiscutivelmente, a noite mais chocante em vários anos da tele transmissão de eventos de MMA. A equipe de médicos do evento abriu as portas do octógono e logo se aglomeraram ao seu redor. Durante 4 minutos, o mundo assistiu em silêncio enquanto o Lutador Paciente permanecia estirado no chão do octógono, braços e pernas abertos, imóvel enquanto sua respiração rouca puxava ar com dificuldade e barulho (o Médico nunca mais esqueceu aquele barulho: um ranho intermitente, quase inumano, causado pelo nariz quebrado). Após os 4 minutos, que mais pareceram uma eternidade, o Paciente lentamente readquiriu o movimento do corpo e se sentou no banquinho; quando finalmente o fez, foi sob uma salva de palmas. Durante semanas a fio aquela cena assombrou a mente do Médico, que sempre sentira alguma espécie de ligação com o Lutador Paciente, quase como se fossem amigos distantes.
E aquela não foi a sua última luta. Após um ano parado, o Lutador voltou novamente ao octógono, tão destemido como sempre, mas incapaz de reunir vitórias em sequência. Antes de se aposentar, chegara a vencer várias vezes ainda, assim como perder outras tantas; destas, pelo menos outras 4 por nocaute.
Agora, à sua frente, o Lutador Paciente era um senhor. Cabelos prateados, corpo emagrecido, coluna torta. O Lutador precisava de uma bengala agora. Sua face estava já bem enrugada; as cicatrizes dos cortes sob ambas as sobrancelhas eram pronunciadas. O nariz, quebrado algumas vezes no decorrer dos anos, era grosso e lhe dava uma aparência ainda mais rústica. O Paciente tinha 60 anos, mas parecia ter 80. Uma dor indefinida percorreu todo o corpo do Médico, pois a noção de que chamara jovem àquele homem quando o vira pela primeira vez, somada a tantos anos assistindo-lhe lutar, havia tornado impossível desassociar sua imagem do conceito de vitalidade. Agora, entretanto, ele parecia velho e frágil. Mortal. O sorriso que se abriu em seu rosto, no entanto, por algum milagre incompreensível, era exatamente o mesmo que, quando jovem, abria na lembrança do Médico, pouco antes de botar a mão no peito e falar: “Coração, doutor”, 37 anos no passado.
- Quanto tempo, doutor! – falou o Lutador Paciente, estendendo-lhe a mão.
Cumprimentaram-se cordialmente, trocaram palavras de apreço. O Médico, que estava ali a pedido do próprio lutador, aproveitou para agradecer-lhe: sua viagem tinha sido à custa dele. Afastando o agradecimento com a sacudida da mão e agradecendo ele próprio pela presença do médico ali, o lutador chamou-o para sentarem-se. Longa e descompromissada conversa foi entabulada, onde, em diversos momentos, o Médico esquecia-se de conter a própria animação por poder trocar palavras com aquela figura, mas sempre lutando contra a compaixão por sua aparência no peito.
Após não muito tempo, a conversa amena cessou. Um momento de silêncio se seguiu. O Médico sentiu que o Lutador se preparava para dizer algo. Imediatamente sentiu-se mal: a expressão do Lutador não era boa. O olhar deste subitamente foi ao encontro de uma fotografia na parede, e o que ele disse em seguida veio como que fruto de recente lembrança.
- Eu tenho Encefalopatia Crônica, doutor- confessou, subitamente, o Lutador Paciente.
Esta revelação explodiu como uma bomba na mente do Médico; os estudos sobre aquela doença não eram muito acurados, mas sabia-se que ocorria com certos pugilistas e lutadores com muita experiência. Encefalopatia Crônica do Boxeador é uma doença que reúne traços do Mal de Parkinson e o Mal de Alzheimer e que leva invariavelmente à demência. Mas antes que o médico pudesse reunir coragem para falar alguma coisa, o Lutador Paciente deu prosseguimento:
- Meu pai eu desconheço, doutor, e minha mãe foi professora - disse ele, com o olhar ainda em algum lugar, mas algum lugar do passado. Sua fala era devagar, incerta – Ela ministrou aulas no ensino fundamental municipal durante 18 anos, e o fez com alegria e comprometimento- falou, saudoso- Até que um acidente a condenou à paraplegia, isto é.- falou o Lutador. Seu olhar logo ficou cheio de dó.- Um motorista doido, desses de todo dia. Desnecessário dizer que ela perdeu o emprego, mas conseguiu alguma indenização do responsável. O suficiente para nos sustentar durante algum tempo.
O Médico pôde ouvir as mãos do lutador aumentarem a pressão que faziam sobre o cabo da bengala que ele portava. Ele logo percebeu que a mão direita do Lutador tremia fortemente. Sem tomar conta disso, o lutador continuou.
- Pouca gente sabe disso, mas aquela foi a única vez que realmente perdi na vida, doutor.
Subitamente autoconsciente, o Médico sentiu o nervosismo apossar-se dele. Nem sabia o que fazer com as mãos, ou como se sentar. Tudo o que ouvia era novo, até porque o Lutador nunca foi de falar de sua vida ou de sua história familiar nas reportagens que concedia.
- Foi uma época difícil, sabe? Mamãe voltou para casa numa cadeira de rodas, e acho que se conta nos dedos a quantidade de vezes que deixou a residência antes de morrer. Eu era um jovem com uns 15 anos, e comecei a sentir a ira.
“A ira é um sentimento forte, doutor, e ela causa um distanciamento entre nós e o resto de nossos sentimentos, e com isso fica mais forte. Eu abracei esse looping. Eu me tornei violento, doutor. A primeira vez que tive contato com uma luta foi numa briga de rua que eu mesmo provoquei; admito que por motivo nenhum. E por muitas outras vezes procurei brigas novamente.”
“A maioria eu ganhava. Não por causa do tamanho ou da experiência, mas só porque pouca gente batia para machucar como eu. Até que um dia eu arrumei briga com um sujeito de academia. Ele lutava Boxe, eu lembro, e ao aceitar meu desafio, convenceu-me a lutar no ginásio dele. Lá, entramos num ringue e nos enfrentamos, sem luvas nem nada. Eu levei a pior surra da vida, doutor. – o Lutador riu, e até sua risada era lenta- Lembro que apanhei tanto que nem consegui mal consegui chegar em casa, tanta era a dor. Dois dias depois, retornei à academia. Não atrás de vingança, mas atrás daquele tipo de conhecimento.”
“Foi quando as artes marciais finalmente entraram na minha vida, doutor, e eu senti aquele clique, sabe? Aquele clique as pessoas sentem quando se apaixonam... Pois sim, eu me apaixonei pelas artes marciais.”
O Lutador pausou por um momento, observando sem atenção algo através da janela. A tremedeira em sua mão amainou. O Médico não conseguia espantar a impressão de que a qualquer momento a voz do seu interlocutor ia acabar, tanta era sua instabilidade.
“Em pouco tempo, o dinheiro da indenização da mamãe acabou e eu tive de largar a escola para arrumar empregos. Claro que não larguei a luta; sempre arranjava tempo para treinar. Apaixonei-me por uma bela moça não muito depois. Foi como vivi por alguns anos: emprego, treino e minha namorada. Ela vivia lá pela minha casa, de modo a fazermos companhia para minha reclusa mãe.”
“Leviano que fui, como é característica flagrante dos jovens, logo minha namorada engravidou pela primeira vez. De início, não achei que seria um problema: não fugi de minha responsabilidade e casei-me com ela. Infelizmente, essa sensação de tola segurança não sobreviveu quando, pouco depois de nosso primeiro filho, descobrimos que outro logo viria também. Foi quando eu senti que de forma alguma minha vida estava tomando forma; só não das melhores.”
“Eu já estava então realizando minhas lutas no circuito amador, e com a descoberta de nossa segunda gestação, entrei para o circuito profissional. Meti-me em umas lutas sangrentas em lugares subterrâneos, doutor, em lugares sombrios e em lugares escondidos.- O lutador, instintivamente, botou as mãos na frente da boca, escondendo-a. Parecia doer-lhe lembrar daqueles tempos.- Os pagamentos garantiam as duas semanas seguintes e geralmente só. Os cortes e machucados, por outro lado, demoravam muito mais do que isso para sarar...- uma lágrima escorreu pela face do Lutador, e o Médico pôde ter uma ideia da crueldade desses tempos- As trocas de emprego por causa de minha aparência, as noites sem dormir por causa das feridas que reabriam, as costelas trincadas, as mãos que eu não conseguia fechar ou abrir, o choro dos meus filhos de madrugada... – a voz dele era trêmula e falhava de vez em quando- Eu sei que eu tenho um coração de lutador doutor, mas é porque eu vi a forja em que ele foi criado, e foi com o calor do inferno e o martelo da realidade que ele tomou forma.”
O médico percebeu que a perna direita do lutador tremia, embora ele tentasse esconder. Sua respiração, que estava acelerada, foi se controlando até que o Lutador readquirisse sua calma. Após alguns longos instantes, ele retomou:
“Seria contraditório dizer, doutor, que eram as minhas lutas responsáveis também pela maior parte da minha felicidade? Lutar, sentir toda aquela adrenalina queimar, ser respeitado dentro do ringue, fazer o que eu amava... Eu me via em novas lutas antes de sararem as costelas trincadas ou as mãos recuperarem os movimentos completamente. Ali, lá dentro, é que eu me sentia vivo. Não em casa. Não. Passamos a morar eu, minha esposa, meus filhos e mamãe na mesma casa, doutor, e o único momento em que eu tinha vontade de morrer era quando eu entrava pela porta da frente e... – o lutador estendeu um pouco uma de suas mãos, como pudesse tocar alguma coisa-... mamãe estava ali, acordada e triste, em sua cadeira de rodas. Seu cabelo amarrado num coque que prateava cada vez mais. Seus olhinhos fundos me esquadrinhando. Ela não dizia nada, doutor. Apenas me olhava... daquela forma. Como se eu não soubesse o que estava fazendo. Como se eu fosse uma criança perdida. Aquilo doía tanto, doutor... Ela me esperava acordada porque não conseguia dormir antes de saber que eu tinha chegado bem em casa. Eu quebraria minhas mãos mil vezes para que ela não precisasse sentir aquela dor pelo filho dela, sabe? E eu acho que eu de fato tentava quebra-las. Todos os dias, na academia, e em todas as lutas. Até que eu comecei a passar tanto tempo treinando que minha mulher ameaçou me largar, e a visão da porta batendo às suas costas sob promessas de não retornar mais me derrubaram mais que qualquer cruzado de direita. Ossos quebrados doem, mas é o coração partido que não tem remendo. Meu casamento, a única coisa que eu tinha de verdade, quase acabou”.
“E não me entenda errado, eu nunca fui nenhum tipo de super prodígio no aspecto profissional, doutor. Não permaneci invicto em minhas lutas amadoras, não... Perdi inclusive em minha luta de estreia no circuito profissional. Foi com muito suor que eu consegui juntar uma boa quantidade de vitórias para merecer substituir um lutador no maior evento da época-  o lutador lançou um sorriso e um olhar cheios de significado para o Médico- Aquela noite, doutor, em que o senhor supervisionou a luta, foi quando tudo mudou.” Um silêncio se apresentou entre o médico e o lutador, enquanto este parecia considerar alguns pensamentos em sua cabeça.
“Sabe, se eu não tivesse vencido aquela luta, se eu não tivesse conseguido passar na minha prova de fogo para ser contratado pelo evento, eu teria de desistir do esporte, doutor. Eu não conseguiria manter minha família; meus filhos estavam crescendo e minha situação econômica parecia encolher como os sapatos dos moleques. Eu tivesse perdido aquela luta, aposentaria minhas gastas luvas naquele mesmo dia e me entregaria aos empregos meio-boca, informais, mas que pudessem pagar minhas contas com segurança maior que aquela que eu extraía da minha cartilagem, dos meus ossos e do sangue de minhas artérias.”
“Mas eu venci, doutor- ele sorriu a boca torta- eu venci porque, quem sabe, talvez o senhor tenha visto tudo o que passei olhando fundo nos meus olhos e me dando aquela oportunidade única de prosseguir na luta. História de vida tem um cheiro, eu sempre digo. E a partir daí, minha história deu certo.”
“Eu viajei o mundo, doutor. Eu conheci os Estados Unidos, eu conheci a Europa. Eu fui até a China e voltei. A maioria de minhas passagens era paga pelo evento, para melhorar ainda mais. Eu fiz turismo pelo mundo quase todo sem gastar um tostão; de primeira classe ainda. Minha primeira parada foi, entretanto, a casa de minha esposa; não adianta desbravar o mundo sem um copiloto, se é que o senhor me entende. E minha família inteira conheceu o mundo, doutor, junta. Aos gritos, eu disse à minha esposa que a amava enquanto tirávamos fotos no topo da Torre Eiffel; com sussurros ela correspondeu esse amor enquanto jantávamos no Japão, ou tomávamos café na Suíça, ou dançávamos na Rússia, ou fazíamos amor na Argentina. Nossos filhos estudaram nas melhores escolas que o dinheiro pode pagar. Meu mais velho se interessou pelo Direito e demonstrou garra ainda maior que a minha estudando anos afora para obter sua aprovação em Harvard. Meu segundo preferiu fazer Medicina em Oxford. Meus outros dois filhos, que vieram bem depois de minha tranquilidade econômica, também vieram a escolher as melhores faculdades para suas respectivas áreas- o Lutador Paciente sorria intensamente, olhando suas fotos na parede. Às vezes, ele demorava demais para retomar a conversa, mas o Médico tentava afastar de sua mente aquela característica tão parecida com um sintoma.
“Todos eles tem faixa preta em Muay Thai e Jiu Jitsu, doutor. Mas mais que tudo, todos eles são faixa preta em perseguirem os próprios sonhos. Eles estão crescendo, sabe? Eles criaram asas e voaram. Se espalharam pelo Globo, cada um buscando o que lhe pertença. Cada um com suas próprias batalhas, com suas próprias vitórias e derrotas. E eles me ligam todas as noites; todas as noites- num sinal de profunda emoção, o Lutador Paciente colocou uma mão sobre o peito, trazendo imediatamente à mente do Médico a imagem daquele jovem determinado que lhe provara a existência de uma força maior em cada ser humano, 37 primaveras antes; e ver que agora a mão do Lutador quase chacoalhava enquanto ele repetia o gesto fez o Médico sentir as próprias lágrimas escorrerem pelo rosto. Um retrato imperfeito.”
“Mamãe viveu para me ver ganhar o cinturão, doutor- falou o Lutador, após grande e sentida pausa- Ela me viu tomar as rédeas de meu destino à força assim como eu vi minha bonança financeira comprar-nos uma casa maior e mais confortável, cheia de facilidades para sua... suas debilidades. Eu tanto tentei leva-la para conhecer o mundo conosco, mas ela não quis... – o Lutador abaixou a cabeça com a lembrança- Dei tudo o que pude à Mamãe, inclusive meu tempo e minha presença; afinal, lutar nos grandes eventos era fácil. Uma luta a cada 3, 4 meses, tempo de sobra para me preparar e para viver minha vida de filho, esposo e pai. E como treinar para mim sempre foi um prazer, eu sinto que a partir de então vivi minha vida como um homem em férias eternas. Mamãe faleceu quando eu tinha 29 anos, e eu espero que eu tenha podido ajudar a diminuir o desgosto que ela sentia pela vida.- o Lutador mais uma vez se perdeu em reflexões- Sabe, às vezes eu acho que a maior tristeza dela não foi perder a movimentação das pernas, mas perder a movimentação das ideias que ela gostava de semear nos alunos quando ensinava suas classes... – e mais uma vez com olhos vermelhos, o Lutador olhou para cima, numa espécie de prece. No seu rosto enrugado, um aspecto abatido- ... mas eu espero que ela saiba que eu não teria sobrevivido sem as lições que ela me ensinou com a vida que ela levou.”
O médico não sabia o que dizer. Uma coisa o incomodava lá no fundo de seu subconsciente, e ele não sabia como expô-la. Logo o Médico voltou a falar; e com a intenção de concluir.
“Fui diagnosticado aos 49 anos. Vários sintomas já tinham começado a aparecer, ainda que fracos. Hoje, minha memória vai e vem como uma lâmpada com mal contato, doutor. O rosto de minha mãe já começa a ficar enevoado se eu não procuro me policiar para checar a foto dela que carrego na carteira. Meus membros enrijeceram. Às vezes preciso de ajuda para beber água ou me alimentar, em virtude das tremedeiras. Tenho dificuldade para organizar minha fala e quase não consigo mais escrever. Nos último anos, tenho me mantido em casa; ocasionalmente saio, mas tomo precauções para não ser visto ou reconhecido porque não vejo necessidade de as revistas unirem-se aos espelhos me minha casa para me maltratar.”
“Continuei treinando, por prazer, até os 53 anos. Quando eu não conseguia mais avançar em diagonal ou sequer usar o quadril para jogar meus golpes, foi quando eu adotei a bengala e abandonei os sacos-de-pancada. E é isso que dói, sabe doutor? Não é a doença em si... É nunca mais poder calçar uma luva por causa das mãos que tremem- falou o Lutador.
De repente, a porta da frente se abriu e uma senhora entrou. Carregava sacolas e falava ao telefone. O motorista vinha atrás segurando mais uma porção de sacolas. Ambos estavam distantes e acabaram passando sem ver quem estava na sala. O médico, sobressaltado, de repente sentiu-se um intruso. O Lutador olhou para ele com um sorriso e disse:
- Minha esposa. A mulher da minha vida e a melhor corner que qualquer lutador já teve - brincou.
Logo a senhora reapareceu, sorrindo e dando um beijinho no Lutador.
- Aí está você! Não vai me apresentar a visita?
- Oras, esse senhor é um ilustre amigo que o tempo cuidou de afastar- respondeu o Lutador. – Este é o Médico de que sempre lhe conto!
A senhora imediatamente esbugalhou os olhos. Cumprimentou o Médico, pediu desculpas por não ter se dirigido a ele antes e o tratou com excesso de respeito e cuidado. Após as cortesias, ela avisou que tinha falado com o filho mais velho do Lutador, e que depois teria boas notícias para lhe falar. Pediu licença e deixou os dois amigos a sós.
Foi então que o médico manifestou algo que já há algum tempo comia-lhe por dentro.
Pediu desculpas.
                                                                                                                           
Capítulo 2.

O Médico explicou que não podia deixar de se sentir culpado. Disse que não conseguia ignorar como tudo aquilo parecia ser culpa dele. Chamou a atenção do lutador para o fato de que ele mesmo avisara, naquela noite do evento, que tinha obrigação de parar a luta em prol do próprio lutador.
Era para isso que os médicos estavam ali no corner,  afinal. Para evitar que os lutadores sofressem aquele tipo de dano. A responsabilidade por aquilo tudo era, e o Médico achava que o Lutador não deveria ignorar aquele fato, do próprio Médico. Até porque se ele tivesse parado a luta... Se alguém houvesse parado a luta em algum momento...
O Lutador Paciente observou-o em silêncio por mais um tempo. Sua dificuldade de organizar as ideias tornava-se cada vez mais evidente.
“Eu sofri 8 nocautes na minha carreira, doutor. Mais para o final dela, o público era extremamente pessimista comigo. Achavam que eu já estava muito velho, que eu não deveria me propor àquele castigo. E as pessoas me diziam, já chega, você já provou o que tinha de provar, você está perdendo. Está na hora de sair, de se aposentar.”
“Eu olhava para elas e não conseguia entender. Você, doutor, tudo o que fez em sua vida, foi para provar algo a alguém que não o senhor? Deveríamos então buscar satisfazer os outros? Era esse tipo de mentalidade que todos nós deveríamos ter? E se eu pensasse assim antes de começar a vencer? Quando perdemos algumas batalhas e as coisas não parecem estar indo bem, nós paramos? É assim que deve ser? Aí então, eu teria largado as luvas e aceitado uma profissão como vigia ou funcionário do McDonalds ou sei lá. Meus filhos teriam crescido nas ruas, com uma figura paterna fracassada e nada mais. Ou quem sabe, vamos mais além agora, talvez eu tivesse feito uma faculdade. Talvez, quem sabe, até conseguisse um emprego razoável. Talvez tivesse fornecido um lar decente para meus filhos. Parece uma opção razoável, não? De fato. Mas você acha belo abandonar o sonhos que são seus para perseguir os de outra pessoa? É isso que os seus pais te disseram para fazer quando você era pequeno? Sonhe com o mundano? Não me entenda errado, eu teria tomado essa direção se tivesse perdido minha oportunidade de entrar naquele evento; eu teria feito esse sacrifício, sem dúvidas; mas pelos meus filhos. Por outras pessoas que não eu. Mas essa situação sumiu para sempre após o meu sucesso no grande circuito. A partir daí, o futuro dos meus eu já conquistara, doutor. Já estava para eles, no banco; o suficiente para uma vida tranquila. A minha missão eu cumpri cedo, e com louvor. “
“Ainda assim, lá estavam meus amigos, preocupados, pedindo para eu parar. Diga-me, doutor, às estrelas o senhor diria que não queimassem, sabendo que o seu fogo é a razão da prematuridade de seu fim? E ao olhar sozinho a noite, negra e sem beleza, sem brilho que aos vivos pudesse encantar, o senhor acharia que a alguém teria satisfeito o seu conselho? Às estrelas, reduzidas à fração do potencial que Deus lhes reservara antes mesmo de nascerem e que agora evitariam brilhar por medo da eterna escuridão que é a morte? Ou até mesmo ao senhor, e aos seus iguais, e aos seus filhos, que nunca mais se poderiam encantar com a beleza que tem um astro que não tivesse medo de abraçar a eternidade que existe nos momentos passageiros, simplesmente por medo de esvair-se antes de lhe tornar a vida colcha dos retalhos das coisas belas que ele nunca conquistara por não ter arriscado mais?”
“ As pessoas dizem que eu desprezei meu corpo porque fi-lo receber mais punição do que seria recomendável se eu quisesse viver saudável, e elas falam como se eu tivesse desperdiçado alguma coisa, como se eu o tivesse feito por nada. Eu, incompreensivelmente, sinto que amei cada momento de minha vida de todo o coração, porque fiz apenas o que amei. Eu bem que gostaria de me arrepender, sabe? Mas é difícil, pois olho para trás e não vejo um único sonho não cumprido. 

Sabe a única coisa que me dói? Não poder fazer tudo novamente. E isso é mau, doutor?
“E o amor? O amor que recebo? Você não faz ideia, doutor. A quantidade de cartas e e-mails que recebo o tempo todo. Mesmo hoje, que não apareço em público a anos, recebo cartas. E elas vêm de todos os lugares; elas são escritas em tantas línguas, são tantas histórias... Através delas vim a conhecer pessoas de todo o mundo. Eu leio todas as cartas, doutor, apesar de responder apenas algumas poucas. As pessoas me contam de suas vidas, de suas experiências... É tão lindo, tem tanta gente que passa por provações tão mais difíceis que as minhas. E sabe o mais belo? “Você nos inspira”, dizem as cartas. Jesus, como que eu posso influenciar tanta gente dessas formas, doutor? Nem eu entendo; só sei que amo. Eu acho que a luta é o mais lindo dos esportes, pois é algo com quem todos podem se identificar. Todo mundo é lutador. Do momento em que botamos os olhos em alguma coisa e decidimos que a queremos, nós somos lutadores.”
 “Eu o convidei aqui, hoje, para agradecê-lo, doutor. Meus médicos preveem que meu quadro deva piorar nos próximos anos, e eu já sinto dificuldade para lembrar muitas coisas. Achei que agora, no crepúsculo de minha vida, eu deveria entrar em contato com o responsável por minha aurora; sem o senhor, eu teria morrido naquele dia, doutor. Por isso, sempre senti necessidade de me explicar, sabe? O senhor, mais do que ninguém, merece saber. Uma pessoa que toca a vida de alguém como o senhor tocou a minha deve ser celebrado, doutor. E por favor, jamais sinta-se mal por mim; reste tranquilo, pois naquele dia, naquele evento, se o senhor contrariou os princípios da Medicina, foi para salvar um paciente; e a família inteira desse lutador, e cada uma das pessoas que já me enviaram as correspondências que guardo comigo. ”
E o Lutador estendeu a mão trêmula para o Médico apertar. E então, toda a história do lutador voltou à mente do médico no espaço de tempo de um segundo, enquanto o médico observava aquela mão frágil chacoalhar à sua frente, aquela que foi a mão de mil vitórias, que agora não conseguiria calçar as próprias luvas. Foi só então que o Médico entendeu. Ele finalmente entendeu como que as coisas valem a pena, e ele ficou mais próximo, ainda que pouco, mas inevitavelmente mais próximo de entender aquilo que faz humano o homem; aquilo que Deus, se é que há um, reserva a cada um de nós antes mesmo do nascimento. 
O médico apertou a frágil mão do lutador, sentindo toda a sua imperfeição e toda a sua história. 
- Você é uma inspiração, Lutador Paciente – reconheceu o Médico-  E se você me permite uma segunda intervenção, eu quero que você entenda: o tratamento para a sua doença é difícil; dificílimo. Agora é que começa o campeonato da sua vida. Então apenas me prometa uma coisa: prometa que você vai subir ao octógono de novo, e embora dessa vez o seu oponente seja essa ECB, ele é só mais um Guardião do Portão. É só isso que ele é. E você não precisa se preocupar, sabe por quê? – e então o médico colocou a própria mão sobre o próprio peito. Sorriu.
Pego de surpresa, o Lutador mal conseguiu conter sua reação perante as palavras de carinho do médico. Uma lágrima desceu pelo seu rosto. Imitando o médico, o Lutador Paciente fez o mesmo gesto. 
 
Capítulo 3
 
Dormir é difícil. O corpo todo dói. Às vezes, o Lutador não consegue fazer os membros pararem de tremer. Às vezes, tem crises de paranoia que os abraços de sua esposa contém cada vez menos. Às vezes, uma depressão o abate de tal forma que as lágrimas não param de descer até o sol nascer. Às vezes, salta da cama no meio da noite, jurando que ainda tem 22 anos e dois empregos. Às vezes, vários desses sintomas. 
Mas, de vez em quando, o Lutador Paciente consegue dormir. Os sonhos são sempre parecidos.
É quando ele é jovem de novo. Coluna ereta, cabelo cortado rente. Ele é forte de novo. Ele entra pela lateral do estádio; 100 mil pessoas gritam o seu nome, acenam e pulam. Ele acena de volta, ele sorri. De repente, ele está dentro do octógono. Ele olha para baixo, toma conhecimento da agilidade de suas pernas, da eficácia de seus pés. Maravilha-se com a maneira como eles se posicionam, instintivamente, da forma correta. A forma que ele aprendeu através de mil aulas de artes marciais. Ele sacode os braços, sente os músculos balançarem ao redor de seus ossos. Abre-os então, como se fosse abraçar o mundo, sentindo a extensão do próprio ser. Não há absolutamente nada que ele não possa fazer; está na melhor forma de sua vida. 
Do outro lado, entra o oponente. Às vezes é uma figura de seu passado, algum dos oponentes que ele enfrentou de verdade, outras não. Às vezes, seu oponente é quem detém o cinturão. Então a luta começa e eles tocam as luvas no centro do octógono. 
Algumas vezes, o Lutador Paciente ganha. Outras, ele perde. Mas não importa, na verdade. Ele sempre dá o melhor de si. Ele sempre sai sob aplausos. A sua é sempre a melhor luta da noite. 
Então, o Lutador Paciente acorda. O sol ainda nem nasceu lá fora, o seu despertador ainda nem tocou. A realidade tem uma aura diferente, composta pela indisposição de seu corpo em contraposição à força de sua mente. Mas foi assim que ele acordou a vida inteira, e é assim que ele pretende acordar até não poder mais. O Lutador dá um beijo na testa de sua esposa. Então o Lutador, o velho Lutador, estica a mão e alcança a bengala. O seu neurologista e os outros médicos chegarão em algumas horas para iniciar o tratamento. 
Está na hora da batalha. Todos os dias. 
 
- FIM -