Subtítulo: Mudança nas regras
37 anos tinham chegado e partido.
O coração do Médico estava acelerado quando os
seus pés desceram do carro ao chão. A casa à sua frente era exuberante, fiel
rebento da bela arquitetura. Não chegava a ser a mansão que ele imaginava, mas
o bom gosto não se mede em metros quadrados. O motorista que lhe levara ali
logo se adiantou para conduzi-lo à porta da frente.
Dentro da casa, uma senhora que trabalhava era a
única pessoa à vista. Na sala onde o Médico foi deixado para esperar, retratos
de família e pôsteres de outros tempos adornavam mesas e paredes. Metade dos
pôsteres mostrava o dono da casa nos tempos em que ainda lutava, e o Médico
sabia identificar todos os eventos.
Muitos anos no passado, apesar de não gostar de
MMA, o Médico forneceu seus serviços em um evento de lutas, e foi o suficiente
para modificar sua opinião sobre o esporte. Logo na sua primeira intervenção, o
Médico tomara uma decisão em relação ao diagnóstico de um lutador que acabara
evitando que o seu oponente, que era o favorito, ganhasse. O Dono desse evento
dissera que tomaria as providências para que ele nunca mais fosse convocado
para diagnosticar lutadores novamente, e assim o fez. O médico não mentiria se
dissesse que aquilo pouco lhe importara; na verdade, aceitara a oportunidade
apenas para prestar favor a um colega e não chegara a pretender tornar aquilo profissão.
O que importou de fato foi o efeito que aquilo lhe causou: entrara no octógono
pela primeira vez um crítico do esporte, saíra amante. Daquele dia em diante,
acompanhou todas as lutas de artes marciais de que teve oportunidade. E era por
isso que conseguia nomear cada uma das lutas ali representadas, seu ano, seus
vencedores e outros detalhes técnicos.
- Vejo que minha coleção pessoal lhe agrada,
doutor. – uma voz de repente deu vida ao ambiente em volta do Médico, que não
conseguiu conter a empolgação .
Aquele por quem o Médico quebrara as regras
médicas, e que posteriormente o mundo
consagrou como “O Lutador Paciente”, estava ali, bem na sua frente, como apenas
uma única vez esteve antes, 37 anos atrás. E o Médico ficou chocado.
Há tempos não se via fotos do Lutador. Aposentado
aos 42 anos, o lutador abraçou o ostracismo não muito tempo depois. Não saía
mais de casa, e quando o fazia tomava as precauções para não ser capturado pelo
olhar ou câmera de ninguém. Não se sabia explicar por quê. A fama em excesso
havia lhe exaurido, diziam. O Médico, aliás, pessoalmente, sempre acreditara
nesta teoria.
Responsável em grande parte pela popularização do
MMA como esporte, o Lutador Paciente foi erguido ao status de ídolo mundial.
Dono de uma personalidade magnética que encantava qualquer um, junto com uma
qualidade sem precedentes nas artes marciais, o Lutador foi explorado em
excesso pela mídia. Alvo das grandes revistas e das grandes manchetes por anos,
ele parecia dificilmente obter sossego. O interessante é que, apesar de tudo, de
onde quer que se olhasse, ele manteve uma conduta exemplar. Nunca fora sequer
parado por dirigir alcoolizado. A dedicação ao esporte, por sua vez, era
perceptível a qualquer um que assistisse lutas suas em sequência; as melhoras
eram sempre evidentes. Após a vitória na noite em que o Médico evitara que ele
fosse impedido de lutar, o Lutador Paciente precisou vencer mais três lutas
para conseguir a disputa pelo título, empreitada em que foi igualmente bem
sucedido. A luta aconteceu em 2 anos no evento, e o Paciente contava então 25
anos de idade.
Deteve o cinturão dos médios durante 11 anos,
estabelecendo um recorde folgado. Durante seu sexto ano de reinado, ele subiu à
categoria dos meio-pesados, em desafio ao campeão desta, e o venceu,
tornando-se detentor de 2 cinturões, que manteve por mais 4 anos.
Até que sofreu sua primeira derrota na organização,
na sua 4ª defesa de cinturão nos meio-pesados. Com 35 anos, seus reflexos
começaram a minguar. Conseguiu defender o cinturão de sua categoria original,
os médios, mais uma vez. Logo em seguida, perdeu-a também. Despido de ambos os
títulos, e apesar das especulações da mídia acerca de sua aposentadoria, o
Lutador procurou se recuperar e obteve mais algumas vitórias para disputar
novamente contra o campeão, angariando no caminho prêmios diversos, inclusive pelas
melhores lutas de 3 anos consecutivos. Não obstante, nunca mais conseguiu
reaver título algum; a pontuação dos juízes sempre frustrava suas empreitadas.
Até que, na 2ª tentativa de reaver o título dos meio-pesados,
o Lutador Paciente sucumbiu a um soco direto seguido por uma avalanche de
marteladas na cabeça durante o terceiro round, sofrendo o primeiro nocaute de
sua carreira. Foi, indiscutivelmente, a noite mais chocante em vários anos da
tele transmissão de eventos de MMA. A equipe de médicos do evento abriu as
portas do octógono e logo se aglomeraram ao seu redor. Durante 4 minutos, o
mundo assistiu em silêncio enquanto o Lutador Paciente permanecia estirado no
chão do octógono, braços e pernas abertos, imóvel enquanto sua respiração rouca
puxava ar com dificuldade e barulho (o Médico nunca mais esqueceu aquele
barulho: um ranho intermitente, quase inumano, causado pelo nariz quebrado). Após
os 4 minutos, que mais pareceram uma eternidade, o Paciente lentamente
readquiriu o movimento do corpo e se sentou no banquinho; quando finalmente o
fez, foi sob uma salva de palmas. Durante semanas a fio aquela cena assombrou a
mente do Médico, que sempre sentira alguma espécie de ligação com o Lutador
Paciente, quase como se fossem amigos distantes.
E aquela não foi a sua última luta. Após um ano
parado, o Lutador voltou novamente ao octógono, tão destemido como sempre, mas
incapaz de reunir vitórias em sequência. Antes de se aposentar, chegara a
vencer várias vezes ainda, assim como perder outras tantas; destas, pelo menos
outras 4 por nocaute.
Agora, à sua frente, o Lutador Paciente era um
senhor. Cabelos prateados, corpo emagrecido, coluna torta. O Lutador precisava
de uma bengala agora. Sua face estava já bem enrugada; as cicatrizes dos cortes
sob ambas as sobrancelhas eram pronunciadas. O nariz, quebrado algumas vezes no
decorrer dos anos, era grosso e lhe dava uma aparência ainda mais rústica. O
Paciente tinha 60 anos, mas parecia ter 80. Uma dor indefinida percorreu todo o
corpo do Médico, pois a noção de que chamara jovem àquele homem quando o vira
pela primeira vez, somada a tantos anos assistindo-lhe lutar, havia tornado
impossível desassociar sua imagem do conceito de vitalidade. Agora, entretanto, ele parecia velho e frágil. Mortal. O sorriso que se abriu em seu
rosto, no entanto, por algum milagre incompreensível, era exatamente o mesmo
que, quando jovem, abria na lembrança do Médico, pouco antes de botar a mão no
peito e falar: “Coração, doutor”, 37
anos no passado.
- Quanto tempo, doutor! – falou o Lutador
Paciente, estendendo-lhe a mão.
Cumprimentaram-se cordialmente, trocaram palavras
de apreço. O Médico, que estava ali a pedido do próprio lutador, aproveitou
para agradecer-lhe: sua viagem tinha sido à custa dele. Afastando o
agradecimento com a sacudida da mão e agradecendo ele próprio pela presença do
médico ali, o lutador chamou-o para sentarem-se. Longa e descompromissada
conversa foi entabulada, onde, em diversos momentos, o Médico esquecia-se de
conter a própria animação por poder trocar palavras com aquela figura, mas sempre
lutando contra a compaixão por sua aparência no peito.
Após não muito tempo, a conversa amena cessou. Um
momento de silêncio se seguiu. O Médico sentiu que o Lutador se preparava para
dizer algo. Imediatamente sentiu-se mal: a expressão do Lutador não era boa. O
olhar deste subitamente foi ao encontro de uma fotografia na parede, e o que
ele disse em seguida veio como que fruto de recente lembrança.
- Eu tenho Encefalopatia Crônica, doutor- confessou,
subitamente, o Lutador Paciente.
Esta revelação explodiu como uma bomba na mente do
Médico; os estudos sobre aquela doença não eram muito acurados, mas sabia-se
que ocorria com certos pugilistas e lutadores com muita experiência.
Encefalopatia Crônica do Boxeador é uma doença que reúne traços do Mal de Parkinson
e o Mal de Alzheimer e que leva invariavelmente à demência. Mas antes que o
médico pudesse reunir coragem para falar alguma coisa, o Lutador Paciente deu
prosseguimento:
- Meu pai eu desconheço, doutor, e minha mãe foi
professora - disse ele, com o olhar ainda em algum lugar, mas algum lugar do
passado. Sua fala era devagar, incerta – Ela ministrou aulas no ensino
fundamental municipal durante 18 anos, e o fez com alegria e comprometimento-
falou, saudoso- Até que um acidente a condenou à paraplegia, isto é.- falou o
Lutador. Seu olhar logo ficou cheio de dó.- Um motorista doido, desses de todo
dia. Desnecessário dizer que ela perdeu o emprego, mas conseguiu alguma
indenização do responsável. O suficiente para nos sustentar durante algum tempo.
O Médico pôde ouvir as mãos do lutador aumentarem
a pressão que faziam sobre o cabo da bengala que ele portava. Ele logo percebeu
que a mão direita do Lutador tremia fortemente. Sem tomar conta disso, o
lutador continuou.
- Pouca gente sabe disso, mas aquela foi a única
vez que realmente perdi na vida,
doutor.
Subitamente autoconsciente, o Médico sentiu o
nervosismo apossar-se dele. Nem sabia o que fazer com as mãos, ou como se
sentar. Tudo o que ouvia era novo, até porque o Lutador nunca foi de falar de
sua vida ou de sua história familiar nas reportagens que concedia.
- Foi uma época difícil, sabe? Mamãe voltou para
casa numa cadeira de rodas, e acho que se conta nos dedos a quantidade de vezes
que deixou a residência antes de morrer. Eu era um jovem com uns 15 anos, e
comecei a sentir a ira.
“A ira é um sentimento forte, doutor, e ela causa
um distanciamento entre nós e o resto de nossos sentimentos, e com isso fica
mais forte. Eu abracei esse looping.
Eu me tornei violento, doutor. A primeira vez que tive contato com uma luta foi
numa briga de rua que eu mesmo provoquei; admito que por motivo nenhum. E por
muitas outras vezes procurei brigas novamente.”
“A maioria eu ganhava. Não por causa do tamanho ou
da experiência, mas só porque pouca gente batia para machucar como eu. Até que
um dia eu arrumei briga com um sujeito de academia. Ele lutava Boxe, eu lembro,
e ao aceitar meu desafio, convenceu-me a lutar no ginásio dele. Lá, entramos
num ringue e nos enfrentamos, sem luvas nem nada. Eu levei a pior surra da
vida, doutor. – o Lutador riu, e até sua risada era lenta- Lembro que apanhei
tanto que nem consegui mal consegui chegar em casa, tanta era a dor. Dois dias
depois, retornei à academia. Não atrás de vingança, mas atrás daquele tipo de
conhecimento.”
“Foi quando as artes marciais finalmente entraram
na minha vida, doutor, e eu senti aquele clique, sabe? Aquele clique as pessoas
sentem quando se apaixonam... Pois sim, eu me apaixonei pelas artes marciais.”
O Lutador pausou por um momento, observando sem
atenção algo através da janela. A tremedeira em sua mão amainou. O Médico não
conseguia espantar a impressão de que a qualquer momento a voz do seu
interlocutor ia acabar, tanta era sua instabilidade.
“Em pouco tempo, o dinheiro da indenização da
mamãe acabou e eu tive de largar a escola para arrumar empregos. Claro que não
larguei a luta; sempre arranjava tempo para treinar. Apaixonei-me por uma bela
moça não muito depois. Foi como vivi por alguns anos: emprego, treino e minha
namorada. Ela vivia lá pela minha casa, de modo a fazermos companhia para minha
reclusa mãe.”
“Leviano que fui, como é característica flagrante
dos jovens, logo minha namorada engravidou pela primeira vez. De início, não
achei que seria um problema: não fugi de minha responsabilidade e casei-me com
ela. Infelizmente, essa sensação de tola segurança não sobreviveu quando, pouco
depois de nosso primeiro filho, descobrimos que outro logo viria também. Foi
quando eu senti que de forma alguma minha vida estava tomando forma; só não das
melhores.”
“Eu já estava então realizando minhas lutas no
circuito amador, e com a descoberta de nossa segunda gestação, entrei para o
circuito profissional. Meti-me em umas lutas sangrentas em lugares
subterrâneos, doutor, em lugares sombrios e em lugares escondidos.- O lutador,
instintivamente, botou as mãos na frente da boca, escondendo-a. Parecia
doer-lhe lembrar daqueles tempos.- Os pagamentos garantiam as duas semanas
seguintes e geralmente só. Os cortes e machucados, por outro lado, demoravam muito
mais do que isso para sarar...- uma lágrima escorreu pela face do Lutador, e o
Médico pôde ter uma ideia da crueldade desses tempos- As trocas de emprego por
causa de minha aparência, as noites sem dormir por causa das feridas que
reabriam, as costelas trincadas, as mãos que eu não conseguia fechar ou abrir,
o choro dos meus filhos de madrugada... – a voz dele era trêmula e falhava de
vez em quando- Eu sei que eu tenho um coração de lutador doutor, mas é porque
eu vi a forja em que ele foi criado, e foi com o calor do inferno e o martelo
da realidade que ele tomou forma.”
O médico percebeu que a perna direita do lutador
tremia, embora ele tentasse esconder. Sua respiração, que estava acelerada, foi
se controlando até que o Lutador readquirisse sua calma. Após alguns longos
instantes, ele retomou:
“Seria contraditório dizer, doutor, que eram as
minhas lutas responsáveis também pela maior parte da minha felicidade? Lutar,
sentir toda aquela adrenalina queimar, ser respeitado dentro do ringue, fazer o
que eu amava... Eu me via em novas lutas antes de sararem as costelas trincadas
ou as mãos recuperarem os movimentos completamente. Ali, lá dentro, é que eu me
sentia vivo. Não em casa. Não. Passamos a morar eu, minha esposa, meus filhos e
mamãe na mesma casa, doutor, e o único momento em que eu tinha vontade de
morrer era quando eu entrava pela porta da frente e... – o lutador estendeu um
pouco uma de suas mãos, como pudesse tocar alguma coisa-... mamãe estava ali,
acordada e triste, em sua cadeira de rodas. Seu cabelo amarrado num coque que
prateava cada vez mais. Seus olhinhos fundos me esquadrinhando. Ela não dizia
nada, doutor. Apenas me olhava... daquela forma. Como se eu não soubesse o que
estava fazendo. Como se eu fosse uma criança perdida. Aquilo doía tanto,
doutor... Ela me esperava acordada porque não conseguia dormir antes de saber
que eu tinha chegado bem em casa. Eu quebraria minhas mãos mil vezes para que
ela não precisasse sentir aquela dor pelo filho dela, sabe? E eu acho que eu de
fato tentava quebra-las. Todos os dias, na academia, e em todas as lutas. Até
que eu comecei a passar tanto tempo treinando que minha mulher ameaçou me
largar, e a visão da porta batendo às suas costas sob promessas de não retornar
mais me derrubaram mais que qualquer cruzado de direita. Ossos quebrados doem,
mas é o coração partido que não tem remendo. Meu casamento, a única coisa que
eu tinha de verdade, quase acabou”.
“E não me entenda errado, eu nunca fui nenhum tipo
de super prodígio no aspecto profissional, doutor. Não permaneci invicto em
minhas lutas amadoras, não... Perdi inclusive em minha luta de estreia no
circuito profissional. Foi com muito suor que eu consegui juntar uma boa
quantidade de vitórias para merecer substituir um lutador no maior evento da
época- o lutador lançou um sorriso e um
olhar cheios de significado para o Médico- Aquela noite, doutor, em que o
senhor supervisionou a luta, foi quando tudo mudou.” Um silêncio se apresentou
entre o médico e o lutador, enquanto este parecia considerar alguns pensamentos
em sua cabeça.
“Sabe, se eu não tivesse vencido aquela luta, se
eu não tivesse conseguido passar na minha prova de fogo para ser contratado
pelo evento, eu teria de desistir do esporte, doutor. Eu não conseguiria manter
minha família; meus filhos estavam crescendo e minha situação econômica parecia
encolher como os sapatos dos moleques. Eu tivesse perdido aquela luta,
aposentaria minhas gastas luvas naquele mesmo dia e me entregaria aos empregos
meio-boca, informais, mas que pudessem pagar minhas contas com segurança maior que
aquela que eu extraía da minha cartilagem, dos meus ossos e do sangue de minhas
artérias.”
“Mas eu venci, doutor- ele sorriu a boca torta- eu
venci porque, quem sabe, talvez o senhor tenha visto tudo o que passei olhando
fundo nos meus olhos e me dando aquela oportunidade única de prosseguir na
luta. História de vida tem um cheiro, eu sempre digo. E a partir daí, minha
história deu certo.”
“Eu viajei o mundo, doutor. Eu conheci os Estados
Unidos, eu conheci a Europa. Eu fui até a China e voltei. A maioria de minhas
passagens era paga pelo evento, para melhorar ainda mais. Eu fiz turismo pelo
mundo quase todo sem gastar um tostão; de primeira classe ainda. Minha primeira
parada foi, entretanto, a casa de minha esposa; não adianta desbravar o mundo
sem um copiloto, se é que o senhor me entende. E minha família inteira conheceu
o mundo, doutor, junta. Aos gritos, eu disse à minha esposa que a amava
enquanto tirávamos fotos no topo da Torre Eiffel; com sussurros ela
correspondeu esse amor enquanto jantávamos no Japão, ou tomávamos café na
Suíça, ou dançávamos na Rússia, ou fazíamos amor na Argentina. Nossos filhos
estudaram nas melhores escolas que o dinheiro pode pagar. Meu mais velho se
interessou pelo Direito e demonstrou garra ainda maior que a minha estudando
anos afora para obter sua aprovação em Harvard. Meu segundo preferiu fazer
Medicina em Oxford. Meus outros dois filhos, que vieram bem depois de minha
tranquilidade econômica, também vieram a escolher as melhores faculdades para
suas respectivas áreas- o Lutador Paciente sorria intensamente, olhando suas
fotos na parede. Às vezes, ele demorava demais para retomar a conversa, mas o
Médico tentava afastar de sua mente aquela característica tão parecida com um sintoma.
“Todos eles tem faixa preta em Muay Thai e Jiu
Jitsu, doutor. Mas mais que tudo, todos eles são faixa preta em perseguirem os
próprios sonhos. Eles estão crescendo, sabe? Eles criaram asas e voaram. Se
espalharam pelo Globo, cada um buscando o que lhe pertença. Cada um com suas
próprias batalhas, com suas próprias vitórias e derrotas. E eles me ligam todas
as noites; todas as noites- num sinal de profunda emoção, o Lutador Paciente
colocou uma mão sobre o peito, trazendo imediatamente à mente do Médico a
imagem daquele jovem determinado que lhe provara a existência de uma força
maior em cada ser humano, 37 primaveras antes; e ver que agora a mão do Lutador
quase chacoalhava enquanto ele repetia o gesto fez o Médico sentir as próprias
lágrimas escorrerem pelo rosto. Um retrato imperfeito.”
“Mamãe viveu para me ver ganhar o cinturão,
doutor- falou o Lutador, após grande e sentida pausa- Ela me viu tomar as
rédeas de meu destino à força assim como eu vi minha bonança financeira comprar-nos
uma casa maior e mais confortável, cheia de facilidades para sua... suas debilidades. Eu tanto tentei
leva-la para conhecer o mundo conosco, mas ela não quis... – o Lutador abaixou
a cabeça com a lembrança- Dei tudo o que pude à Mamãe, inclusive meu tempo e minha
presença; afinal, lutar nos grandes eventos era fácil. Uma luta a cada 3, 4 meses, tempo de sobra para me preparar
e para viver minha vida de filho, esposo e pai. E como treinar para mim sempre
foi um prazer, eu sinto que a partir de então vivi minha vida como um homem em
férias eternas. Mamãe faleceu quando eu tinha 29 anos, e eu espero que eu tenha
podido ajudar a diminuir o desgosto que ela sentia pela vida.- o Lutador mais
uma vez se perdeu em reflexões- Sabe, às vezes eu acho que a maior tristeza
dela não foi perder a movimentação das pernas, mas perder a movimentação das
ideias que ela gostava de semear nos alunos quando ensinava suas classes... – e
mais uma vez com olhos vermelhos, o Lutador olhou para cima, numa espécie de
prece. No seu rosto enrugado, um aspecto abatido- ... mas eu espero que ela
saiba que eu não teria sobrevivido sem as lições que ela me ensinou com a vida
que ela levou.”
O médico não sabia o que dizer. Uma coisa o
incomodava lá no fundo de seu subconsciente, e ele não sabia como expô-la. Logo
o Médico voltou a falar; e com a intenção de concluir.
“Fui diagnosticado aos 49 anos. Vários sintomas já
tinham começado a aparecer, ainda que fracos. Hoje, minha memória vai e vem
como uma lâmpada com mal contato, doutor. O rosto de minha mãe já começa a
ficar enevoado se eu não procuro me policiar para checar a foto dela que
carrego na carteira. Meus membros enrijeceram. Às vezes preciso de ajuda para
beber água ou me alimentar, em virtude das tremedeiras. Tenho dificuldade para
organizar minha fala e quase não consigo mais escrever. Nos último anos, tenho
me mantido em casa; ocasionalmente saio, mas tomo precauções para não ser visto
ou reconhecido porque não vejo necessidade de as revistas unirem-se aos
espelhos me minha casa para me maltratar.”
“Continuei treinando, por prazer, até os 53 anos.
Quando eu não conseguia mais avançar em diagonal ou sequer usar o quadril para
jogar meus golpes, foi quando eu adotei a bengala e abandonei os
sacos-de-pancada. E é isso que dói, sabe doutor? Não é a doença em si... É
nunca mais poder calçar uma luva por causa das mãos que tremem- falou o Lutador.
De repente, a porta da frente se abriu e uma
senhora entrou. Carregava sacolas e falava ao telefone. O motorista vinha atrás
segurando mais uma porção de sacolas. Ambos estavam distantes e acabaram
passando sem ver quem estava na sala. O médico, sobressaltado, de repente
sentiu-se um intruso. O Lutador olhou para ele com um sorriso e disse:
- Minha esposa. A mulher da minha vida e a melhor corner que qualquer lutador já teve -
brincou.
Logo a senhora reapareceu, sorrindo e dando um
beijinho no Lutador.
- Aí está você! Não vai me apresentar a visita?
- Oras, esse senhor é um ilustre amigo que o tempo
cuidou de afastar- respondeu o Lutador. – Este é o Médico de que sempre lhe
conto!
A senhora imediatamente esbugalhou os olhos.
Cumprimentou o Médico, pediu desculpas por não ter se dirigido a ele antes e o
tratou com excesso de respeito e cuidado. Após as cortesias, ela avisou que
tinha falado com o filho mais velho do Lutador, e que depois teria boas notícias
para lhe falar. Pediu licença e deixou os dois amigos a sós.
Foi então que o médico manifestou algo que já
há algum tempo comia-lhe por dentro.
Pediu desculpas.
Capítulo 2.
O Médico explicou que não podia deixar de se
sentir culpado. Disse que não conseguia ignorar como tudo aquilo parecia ser
culpa dele. Chamou a atenção do lutador para o fato de que ele mesmo avisara,
naquela noite do evento, que tinha obrigação de parar a luta em prol do próprio
lutador.
Era para isso que os médicos estavam ali no corner,
afinal. Para evitar que os lutadores sofressem aquele tipo de dano. A
responsabilidade por aquilo tudo era, e o Médico achava que o Lutador não
deveria ignorar aquele fato, do próprio Médico. Até porque se ele tivesse
parado a luta... Se alguém houvesse parado a luta em algum momento...
O Lutador Paciente observou-o em silêncio por
mais um tempo. Sua dificuldade de organizar as ideias tornava-se cada vez mais
evidente.
“Eu sofri 8 nocautes na minha carreira, doutor. Mais para o final dela, o público era extremamente pessimista comigo. Achavam que eu já estava muito velho, que eu não deveria me propor àquele castigo. E as pessoas me diziam, já chega, você já provou o que tinha de provar, você está perdendo. Está na hora de sair, de se aposentar.”
“Eu olhava para elas e não conseguia entender. Você, doutor, tudo o que fez em sua vida, foi para provar algo a alguém que não o senhor? Deveríamos então buscar satisfazer os outros? Era esse tipo de mentalidade que todos nós deveríamos ter? E se eu pensasse assim antes de começar a vencer? Quando perdemos algumas batalhas e as coisas não parecem estar indo bem, nós paramos? É assim que deve ser? Aí então, eu teria largado as luvas e aceitado uma profissão como vigia ou funcionário do McDonalds ou sei lá. Meus filhos teriam crescido nas ruas, com uma figura paterna fracassada e nada mais. Ou quem sabe, vamos mais além agora, talvez eu tivesse feito uma faculdade. Talvez, quem sabe, até conseguisse um emprego razoável. Talvez tivesse fornecido um lar decente para meus filhos. Parece uma opção razoável, não? De fato. Mas você acha belo abandonar o sonhos que são seus para perseguir os de outra pessoa? É isso que os seus pais te disseram para fazer quando você era pequeno? Sonhe com o mundano? Não me entenda errado, eu teria tomado essa direção se tivesse perdido minha oportunidade de entrar naquele evento; eu teria feito esse sacrifício, sem dúvidas; mas pelos meus filhos. Por outras pessoas que não eu. Mas essa situação sumiu para sempre após o meu sucesso no grande circuito. A partir daí, o futuro dos meus eu já conquistara, doutor. Já estava para eles, no banco; o suficiente para uma vida tranquila. A minha missão eu cumpri cedo, e com louvor. “
“Ainda assim, lá estavam meus amigos, preocupados, pedindo para eu parar. Diga-me, doutor, às estrelas o senhor diria que não queimassem, sabendo que o seu fogo é a razão da prematuridade de seu fim? E ao olhar sozinho a noite, negra e sem beleza, sem brilho que aos vivos pudesse encantar, o senhor acharia que a alguém teria satisfeito o seu conselho? Às estrelas, reduzidas à fração do potencial que Deus lhes reservara antes mesmo de nascerem e que agora evitariam brilhar por medo da eterna escuridão que é a morte? Ou até mesmo ao senhor, e aos seus iguais, e aos seus filhos, que nunca mais se poderiam encantar com a beleza que tem um astro que não tivesse medo de abraçar a eternidade que existe nos momentos passageiros, simplesmente por medo de esvair-se antes de lhe tornar a vida colcha dos retalhos das coisas belas que ele nunca conquistara por não ter arriscado mais?”
“ As pessoas dizem que eu desprezei meu corpo porque fi-lo receber mais punição do que seria recomendável se eu quisesse viver saudável, e elas falam como se eu tivesse desperdiçado alguma coisa, como se eu o tivesse feito por nada. Eu, incompreensivelmente, sinto que amei cada momento de minha vida de todo o coração, porque fiz apenas o que amei. Eu bem que gostaria de me arrepender, sabe? Mas é difícil, pois olho para trás e não vejo um único sonho não cumprido.
Sabe a única coisa que me dói? Não poder fazer tudo novamente. E isso é mau, doutor?”
“E o amor? O amor que recebo? Você não faz ideia, doutor. A quantidade de cartas e e-mails que recebo o tempo todo. Mesmo hoje, que não apareço em público a anos, recebo cartas. E elas vêm de todos os lugares; elas são escritas em tantas línguas, são tantas histórias... Através delas vim a conhecer pessoas de todo o mundo. Eu leio todas as cartas, doutor, apesar de responder apenas algumas poucas. As pessoas me contam de suas vidas, de suas experiências... É tão lindo, tem tanta gente que passa por provações tão mais difíceis que as minhas. E sabe o mais belo? “Você nos inspira”, dizem as cartas. Jesus, como que eu posso influenciar tanta gente dessas formas, doutor? Nem eu entendo; só sei que amo. Eu acho que a luta é o mais lindo dos esportes, pois é algo com quem todos podem se identificar. Todo mundo é lutador. Do momento em que botamos os olhos em alguma coisa e decidimos que a queremos, nós somos lutadores.”
“Eu o convidei aqui, hoje, para agradecê-lo, doutor. Meus médicos preveem que meu quadro deva piorar nos próximos anos, e eu já sinto dificuldade para lembrar muitas coisas. Achei que agora, no crepúsculo de minha vida, eu deveria entrar em contato com o responsável por minha aurora; sem o senhor, eu teria morrido naquele dia, doutor. Por isso, sempre senti necessidade de me explicar, sabe? O senhor, mais do que ninguém, merece saber. Uma pessoa que toca a vida de alguém como o senhor tocou a minha deve ser celebrado, doutor. E por favor, jamais sinta-se mal por mim; reste tranquilo, pois naquele dia, naquele evento, se o senhor contrariou os princípios da Medicina, foi para salvar um paciente; e a família inteira desse lutador, e cada uma das pessoas que já me enviaram as correspondências que guardo comigo. ”
E o Lutador estendeu a mão trêmula para o Médico apertar. E então, toda a história do lutador voltou à mente do médico no espaço de tempo de um segundo, enquanto o médico observava aquela mão frágil chacoalhar à sua frente, aquela que foi a mão de mil vitórias, que agora não conseguiria calçar as próprias luvas. Foi só então que o Médico entendeu. Ele finalmente entendeu como que as coisas valem a pena, e ele ficou mais próximo, ainda que pouco, mas inevitavelmente mais próximo de entender aquilo que faz humano o homem; aquilo que Deus, se é que há um, reserva a cada um de nós antes mesmo do nascimento.
O médico apertou a frágil mão do lutador, sentindo toda a sua imperfeição e toda a sua história.
- Você é uma inspiração, Lutador Paciente – reconheceu o Médico- E se você me permite uma segunda intervenção, eu quero que você entenda: o tratamento para a sua doença é difícil; dificílimo. Agora é que começa o campeonato da sua vida. Então apenas me prometa uma coisa: prometa que você vai subir ao octógono de novo, e embora dessa vez o seu oponente seja essa ECB, ele é só mais um Guardião do Portão. É só isso que ele é. E você não precisa se preocupar, sabe por quê? – e então o médico colocou a própria mão sobre o próprio peito. Sorriu.
Pego de surpresa, o Lutador mal conseguiu conter sua reação perante as palavras de carinho do médico. Uma lágrima desceu pelo seu rosto. Imitando o médico, o Lutador Paciente fez o mesmo gesto.
Capítulo 3
Dormir é difícil. O corpo todo dói. Às vezes, o Lutador não consegue fazer os membros pararem de tremer. Às vezes, tem crises de paranoia que os abraços de sua esposa contém cada vez menos. Às vezes, uma depressão o abate de tal forma que as lágrimas não param de descer até o sol nascer. Às vezes, salta da cama no meio da noite, jurando que ainda tem 22 anos e dois empregos. Às vezes, vários desses sintomas.
Mas, de vez em quando, o Lutador Paciente consegue dormir. Os sonhos são sempre parecidos.
É quando ele é jovem de novo. Coluna ereta, cabelo cortado rente. Ele é forte de novo. Ele entra pela lateral do estádio; 100 mil pessoas gritam o seu nome, acenam e pulam. Ele acena de volta, ele sorri. De repente, ele está dentro do octógono. Ele olha para baixo, toma conhecimento da agilidade de suas pernas, da eficácia de seus pés. Maravilha-se com a maneira como eles se posicionam, instintivamente, da forma correta. A forma que ele aprendeu através de mil aulas de artes marciais. Ele sacode os braços, sente os músculos balançarem ao redor de seus ossos. Abre-os então, como se fosse abraçar o mundo, sentindo a extensão do próprio ser. Não há absolutamente nada que ele não possa fazer; está na melhor forma de sua vida.
Do outro lado, entra o oponente. Às vezes é uma figura de seu passado, algum dos oponentes que ele enfrentou de verdade, outras não. Às vezes, seu oponente é quem detém o cinturão. Então a luta começa e eles tocam as luvas no centro do octógono.
Algumas vezes, o Lutador Paciente ganha. Outras, ele perde. Mas não importa, na verdade. Ele sempre dá o melhor de si. Ele sempre sai sob aplausos. A sua é sempre a melhor luta da noite.
Então, o Lutador Paciente acorda. O sol ainda nem nasceu lá fora, o seu despertador ainda nem tocou. A realidade tem uma aura diferente, composta pela indisposição de seu corpo em contraposição à força de sua mente. Mas foi assim que ele acordou a vida inteira, e é assim que ele pretende acordar até não poder mais. O Lutador dá um beijo na testa de sua esposa. Então o Lutador, o velho Lutador, estica a mão e alcança a bengala. O seu neurologista e os outros médicos chegarão em algumas horas para iniciar o tratamento.
Está na hora da batalha. Todos os dias.
- FIM -