–
Eu ainda posso lutar, doutor.
As luzes eram ofuscantes dentro do octógono. Nada de admirar-se, até
porque ali era o ponto de convergência de todos os holofotes. O lutador não
conseguia manter-se imóvel, e no fundo de sua mente o médico procurava alguma
distinção conclusiva entre inquietude provocada por adrenalina e convulsões
causadas por trauma; seu raciocínio acelerado não conseguia, entretanto,
harmonizar diagnóstico.
Chamado por um colega seu para substituí-lo naquele evento de MMA, o
médico era verdadeiramente de primeira viagem naquele mundo dos diagnósticos
improvisados. A bem da verdade pensava não se tratar aquilo mais do que palpite
abalizado. Como examinar um paciente quando ele está saltitando na sua frente, falhando
em ficar parado ou sequer olhar para alguma direção que não a do seu oponente?
O médico estava nervoso, mas tentava se manter objetivo; infinitas pessoas lhe
assistiam naquele momento. Estava numa arena com uma plateia de mais de 30.000
pessoas, fora o meio milhão que acompanha em casa, e, apesar de ser um médico
conceituado, estava acostumado a atender dentro da tranquilidade de seu
consultório. Além disso, aquele era o primeiro evento de lutas que assistia na
vida.
Apesar da popularidade que aquele tipo de evento viera ganhando nos
últimos anos, o médico nunca se sentara para assistir nada a respeito. Todo mês,
uma ou duas edições eram transmitidas, mas ele nunca assistia. No seu conceito,
aquilo não era mais do que violência gratuita; uma espécie de pão-e-circo para
os mais descompromissados. Ele não concebia achar conteúdo em um esporte que
coloca dois seres humanos para se digladiar até que um deles falhe em
apresentar reação; seja por meio das
concussões infligidas por golpes sobre-humanos, seja por meio dos
estrangulamentos, das torções... Barbaridade. Não sem um pouco de
desgosto aceitara preencher a vaga de seu amigo, mas lhe devia um grande favor
e realmente não havia meio de driblar o pedido. Infelizmente, logo na segunda
luta da noite um dos lutadores foi vitimado por uma quantidade satânica de
cotoveladas e, apesar de eventualmente se desvencilhar da investida do
adversário, uma pequena fonte de sangue agora fluía de seu supercílio esquerdo,
enquanto um inchaço enorme vinha à luz na mesma lateral de seu rosto.
Desnecessário dizer que logo o árbitro suspendeu a luta e chamou o médico para
avaliar a condição do lutador para prosseguir.
Com passos rápidos o médico subiu os degraus para dentro do octógono e
procedeu à avaliação do paciente. Agora, de perto, as coisas pareciam ainda
mais feias do que ele imaginava. O
inchaço formara uma esfera de uns 5 cm de diâmetro, enquanto o sangue fluía farto
do corte; com a somatória das duas coisas, resultava que o lutador não
conseguia enxergar com o olho esquerdo. O médico olhou para o cronômetro do
combate, tomando ciência de que estavam no final do segundo round e penúltimo
round. Faltavam aproximadamente 6 minutos para o final da luta, e o médico achava
que aquelas lacerações impossibilitavam o combate de continuar.
–
Eu ainda posso lutar, doutor- sussurrou o lutador.
O médico estava terminando de examinar o corte no supercílio e, em
decorrência da sua proximidade com o lutador, ele sabia que nem o câmera man
atrás deles conseguira ouvir aquilo. Discretamente o médico olhou o telão da
arena, onde eram visíveis suas costas e um pouco da face desfigurada do
lutador. Voltou suas atenções ao paciente.
–
Vou ter que parar essa luta, senhor. - retrucou o
médico. Suspeitava de que aquele inchaço era fruto de uma fratura no osso
orbital, o que era sério. Mas assim que a última sílaba escapou por entre seus
lábios, o lutador, num ato reflexo, deu um passo à frente, exprimindo
voluntariedade.
–
Não! Doutor, eu posso lutar! - ele falou,
desesperado de tal forma que o médico se viu pego de surpresa.
–
Desculpe-me senhor, mas não posso deixar essa luta
continuar. Um pedaço do seu supercílio está pendendo do seu rosto e eu creio
que haja uma fratura no seu crânio; eu estaria maluco se deixasse essa luta
prosseguir- respondeu o médico, tentando exprimir compaixão sincera, ainda que
taxatividade. No momento em que ia dar um passo para trás, o lutador segurou
seu ombro.
–
Doutor, por favor! Não pare a luta, eu vou
vencer!- ele falou. Não estivesse seu olho esquerdo oculto pelos ferimentos, o
médico sabia que um olhar de súplica estaria formado.
O médico olhou rapidamente o adversário do seu paciente. Ambos eram
homens grandes e musculosos, mas o oponente era um brutamonte consagrado nos grandes
circuitos, com uma quantidade impressionante de vitórias em seu cartel e que
rumava à disputa de cinturão. Seu paciente, por outro lado, era um jovem bem
mais inexperiente que fora convidado para participar do evento em substituição a
outro lutador que se contundira um mês antes da luta. Era a sua primeira vez
dentro da grande promoção, e se perdesse seria muito bem sua última. Isto, ao
menos, foi o que lhe disseram momentos antes de ser convocado para avaliá-lo.
–
Acredite, filho, é para o seu próprio bem. Se eu
não parar esta luta agora, posso prejudicar sua vida para sempre.- argumentou o
doutor.
–
Doutor, se o senhor parar essa luta eu nunca mais
terei a chance de trabalhar nesta promoção, e tudo para o que me esforço todos
os dias terá sido em vão! – respondeu o lutador, automaticamente- Se o senhor
parar essa luta, minha vida será prejudicada para sempre com certeza! Por favor, doutor, eu tenho dois filhos pequenos para
quem sou tudo no mundo, por favor, se eu fracassar hoje, não só eu não terei
como pagar sequer a condução deles para a escola como também jamais me
perdoarei por não ter feito tudo o que estava ao meu alcance!
De repente, o médico sentiu seu coração pesar. Olhando novamente o
adversário de seu paciente. Ele parecia inteiro, parecia bem. Sorria e flertava
com o público enquanto o médico se preocupava com a saúde de seu paciente. Leigo
no esporte como fosse, não parecia ao médico haver jeito de o jovem vencer a
luta.
–
Doutor, o senhor não sabe por quanta coisa já
passei para estar aqui hoje.- o lutador de repente tentou adotar um ar mais
comedido, buscando parecer mais razoável, embora fosse incapaz de conter as
suas emoções profundas - Eu amo lutar. Eu amo com paixão, paixão que até uma ex-esposa
já me custou. Mas meus filhos não me deixaram, doutor. Eles me acham herói,
doutor, mas o senhor sabe que não existem heróis que precisem equilibrar o
papel de pai, 2 empregos de salário-mínimo e o treino de 3 artes maciais. Mas eu tenho certeza, doutor, um homem bem
sucedido como o senhor, eu tenho certeza que o senhor sabe o que é precisar
vencer na vida. Eu tenho certeza que o senhor sabe o que é ralar e ter que
colocar tudo na mesa. Eu sei, doutor, eu sei que o senhor me entende. Esses
ferimentos, eles podem me matar, doutor, mas só se por causa deles eu não puder
mais lutar. Só assim eles podem me matar!- concluiu o lutador, e o médico não
sabia se eram lágrimas em seus olhos ou apenas o brilho geral de suor que lhe
permeava o corpo.
–
Mas como você pretende vencer, essa luta? Está
terminando o segundo round e o outro cara parece que acabou de entrar no
octógono. Você, bem, parece que você foi atropelado por um caminhão... -
inquiriu o médico, descrente.
Botando a mão sobre o peito esquerdo, o lutador respondeu:
–
Coração, doutor. Homens são definidos pelas
adversidades que encontram, e eu tenho certeza
de que as minhas me fazem maior do que o meu oponente. E eu posso lhe mostrar,
o senhor só precisa permitir.
Subitamente, o árbitro apareceu ao lado dos dois.
–
E então, doutor? - perguntou ele.
De repente, o médico lembrou que todos os olhos do mundo estavam em sua
pessoa. O árbitro, o lutador, a câmera, os fãs, todos aguardavam pelo seu
parecer.
Os seus olhos caíram na mão que o seu paciente ainda tinha sobre o
peito, e de repente ele se viu limpando o sangue da face dele e declarando:
–
Isso não é nada, árbitro. Esse daqui luta por mais
5 rounds.
As sobrancelhas do árbitro, em espanto, esticaram-se até quase a nuca,
e ele perguntou se o médico estava certo do parecer. Contrariando seu próprio
bom-senso, o médico forneceu sua palavra.
Sentado em seu lugar de volta, o médico assistiu o restante da luta na
ponta da cadeira. Honestamente, arrependera-se da própria decisão no segundo em
que saíra do octógono; mas procurava concatenar o peso em sua consciência numa
torcida introvertida pelo paciente. Assistiu com tristeza enquanto, pelo
restante do minuto final do segundo round, o jovem lutador retomou a surra nos
exatos termos de antes da intervenção do árbitro.
Durante o minuto entre-rounds, sentou-se ao seu lado o homem que o
médico reconheceu como o Dono do evento. Embora estivesse trabalhando para ele,
nunca tivera a oportunidade de falar-lhe diretamente.
–
Aquele sujeito não deveria ter voltado para luta-
falou o Dono, sem que houvesse sequer algum cumprimento. Apesar da falta de
educação, o médico manteve-se profissional.
–
Não foi o que a minha análise mostrou- respondeu.
–
Foda-se sua análise. Você impediu que o meu
lutador conseguisse uma vitória por parada médica e agora eu estou achando que
ele vai conseguir uma merda de uma vitória por decisão dos juízes. - falou o Dono.-
Se isso acontecer, o meu lutador ainda vai precisar de mais uma ou duas lutas
para convencer o público a querer vê-lo enfrentar o campeão. Sabe o quanto eu
deixo de lucrar assim? Esse esporte precisa de estrelas, doutor.
O médico não conseguia acreditar na grosseria do homem. Permaneceu
calado, no entanto, apenas observando.
–
Só vim aqui para lhe avisar, doutor, que se o
senhor não aproveitar esse minuto entre-rounds para parar a luta, o rapaz vai
perder de qualquer forma E eu ainda vou processá-lo pelos danos que ELE sofrer,
respaldado juridicamente pela sua negligência médica.- os olhos cruéis do homem
queimavam o rosto do médico, ameaça que eram.
Tentando manter a calma, o médico procurou usar todo o seu sangue frio
para mentir:
–
Minha decisão médica satisfaz todos os parâmetros
de análise exigidos pela comissão médica do esporte, e ela é inatacável. –
disse ele, ao passo que imaginava em sua cabeça a nota que os membros da
comissão conseguiriam numa competição de salto a distância com o pulo que devem
ter dado de suas cadeiras ao ver as condições do lutador que ele deixara
prosseguir lutando. - Não posso impedi-lo de me processar, mas posso com
certeza vencê-lo no tribunal se o fizer.
Por um momento, os dois se olharam. O médico não estava certo se seu
blefe fora bem sucedido, mas o dono do evento com certeza parecia menos
agressivo.
–
Agora, por favor, se o senhor me der licença,
pretendo apreciar o restante da luta. E prepare-se para uma surpresa nesse
round final- concluiu o médico, lançando uma previsão ousada, apesar de ser
totalmente ignorante no assunto dos combates. O homem pareceu se enfurecer
profundamente com aquele pequeno soco argumentativo.
–
Vê-lo-ei nos tribunais, doutor.- ameaçou o homem,
enquanto se levantava.- Tudo isso porque foi com a cara de um
lutadorzinho-escada... - saiu então, resmungando.
O terceiro round começou e o lutador brutamonte foi, à passos largos,
em direção ao lutador jovem, mais faminto do que nunca pela vitória. O médico
sentiu seu coração acelerar no peito. O seu paciente tentou acertar um soco
potente no lutador no favorito, mas com os reflexos de um gato, o alvo
esgueirou-se por baixo do soco e, fazendo as entranhas do médico decolarem em seu
abdome, levantou-se com um gancho de esquerda que acertou o queixo do jovem e
uma martelada de direita que o jogou ao chão sem cerimônias, quase apagado. A
plateia levantou-se de seus lugares e clamou insanamente. O árbitro correu para
perto, não parando a luta por muito pouco. O médico percebeu que fora por causa
do olho esquerdo fechado que o lutador fora incapaz de ver o golpe chegando, e aquilo o sufocou
por dentro.
Para finalizar a luta, o lutador mais experiente correu em direção à
cabeça do oponente, pronto para acertar mais socos e conseguir um nocaute. Ao
que se aproximou, o médico ergueu as próprias mãos numa atitude defensiva
automática, esforçando-se para assistir o que viria em seguida.
De repente, o lutador estirado no chão esticou uma mão, segurando a
canela do oponente, e girou sobre o próprio quadril para tentar o que o médico
julgou ser uma rasteira. Surpreendentemente, o que era uma rasteira tornou-se
um complexo golpe de jiu jitsu que , criando uma alavanca extremamente
dolorosa, fez com que o lutador mais bruto caísse ao chão fazendo uma careta de
dor impressionante; pouco depois submeteu a vitória. O árbitro separou os
adversários e levantou a mão do jovem lutador, que apesar da horrível contusão
no rosto, vibrava como se fosse o homem mais feliz do mundo.
Logo subiu ao octógono a equipe de reportagens do evento, que
rapidamente buscou entrevista com o vencedor. Subiram também os dois filhos de
que o jovem lutador lhe falara, que abraçaram o pai às lágrimas, não tardando
este a verter suas próprias. Durante a entrevista, o vencedor chamou seu
oponente derrotado e abraçou-o longamente, ambos parabenizando-se pelo combate
espetacular. Resquícios de ódio não havia.
Posteriormente, ao descer pelos degraus do octógono, ainda abraçado aos
filhos, o lutador deteve-se por um momento para dirigir-se ao médico e apertar-lhe
as mãos.
–
Coração, doutor! - falou, emocionando-se
novamente.
–
Coração de lutador – completou lhe o médico,
sorridente.
–
–
Antes, o médico via a grade que circula o octógono
como as grades de um zoológico, onde se expunha ao público o lado mais
animalesco do ser humano, numa tentativa de unicamente lhe saciar o desejo por
sanguinolência. Não mais. Após aquela luta, e todas as outras que se seguiram
no decorrer da noite, ele aprendeu que a grade estava ali não para afastar o
público da violência, mas os lutadores de todo o resto.
Advogados possuem escritórios, médicos possuem consultórios, artistas
tem o palco e lutares têm a grade. É dentro dela que eles se apresentam, é lá
que eles mostram o fruto de sua paixão e a extensão de sua dedicação. Ao longe,
a plateia pode assistir-lhes para
simplesmente satisfazer sua própria animalidade, ou pode assistir-lhes para
apreciar a arte. A disputa, o combate, a determinação, a superação, a
disciplina, a estratégia... O médico crucificava o esporte por não crer que
houvesse conteúdo. Mas ele então o achou, e ele o achou como um homem que bate
uma picareta no chão do deserto e descobre uma fonte rica de petróleo. É belo.
Violento?
A violência só existe quando os homens não devem lutar, e ainda assim
procedem ao embate. Quando dois homens vivem a vida para disputar esse esporte,
e se dedicam e se preparam todos os dias, e entram na arena com chances
similares de vitória, não se trata de violência. Trata-se de disputa, de grandiosa
disputa. O esporte é agressivo, mas violento? Lembrando-se do dono do evento
tentando assustá-lo, e da ideia que o dono do evento tinha de que o estaria
jogando um lutador-escada para ser assassinado pelo mais experiente, o médico
percebeu que era inegável que de fato havia certa violência no esporte: colocar
uma força imparável contra outra que se sabe não pertencer à sua frente; é
violência. Mas não foi o que aconteceu naquela noite.