segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Decepção na Academia

Desde criança, um dos lados mágicos da minha vida foi o cinema. Sempre gostei de ler, de escrever, de ouvir músicas, assistir TV... Mas nada se comparava à telona, sabe? Atores e roteiros e diretores e trailers e filmes, astronautas e dinossauros e robôs e personagens mundanos e tudo aquilo que dá vida ao Cinema, dão vida também a mim. E como consequência, desde cedo acompanho a cerimônia de premiações da Academia.
Não sei se existe isso de dizer que tal filme foi o melhor filme do ano, sabe? Mas em algum momento na história o Oscar se tornou um aspecto poderoso da indústria cinematográfica, e por isso ele deve ser respeitado. Ele alavanca carreiras, ele constrói credibilidade, ele cria mitos e ele consegue inserir na sociedade uma consciência bonita, dando concretude à ficção que nos é apresentada pela indústria. Então se a Academia vai lá e dá o Oscar para um filme que não necessariamente foi o melhor filme do ano, por mais que haja frisson negativo, mesmo assim ela faz um favor a todos os filmes; por mais que a decisão seja opinativa das pessoas que trabalham dentro dela. Ressalto, claro, que falo das decisões que, por mais que não sejam populares, ainda respeitam um mínimo de lógica; às vezes, não há como negar, a Academia sai do seu caminho e premia de forma totalmente incoerente (como ontem, quando premiaram como Melhor Atriz uma atriz coadjuvante em uma atuação não mais do que boa).
O problema é que muita gente não gosta da Ppolítica que a Academia exerce. Vale aqui fazer uma diferenciação: falo de Política, que, em termos amplos, se refere à forma de pensar, ao conjunto de princípios e valores que arbitram decisões livres; não quero dizer política, com letra minúscula e que é apenas uma interpretação restritiva, mera vereda do conceito maior já explicado e que se remede à política governamental, de partidos políticos e poderes executivos e governos administrativos. Pois bem, essa Política da Academia ano sim e outro também cai sob chumbo grosso da mídia especializada. Melhores Filmes favorecidos ou não, diretores desnecessariamente indicados ou diretores chutados de lado (olhando pra você, Quentin; tá passando da hora, né irmão?), etc. Via de regra, as críticas são sensatas mas não aptas a crucificar a Academia. Oras, a Academia é uma sociedade privada como qualquer outra, ela tem direito de formular suas próprias opiniões e premiar quem lhe agradar mais, e eu sempre entendi isso. Por isso, apesar de me indignar várias vezes, não costumo atirar-lhe pedras. Respeito a Academia inclusive por ela ser sensível ao seu lugar na Indústria: ela é uma sociedade privada intitulada à opiniões, claro, mas ela tem muito poder e geralmente age ciente disso. Essa característica é importante pois impõe que suas decisões sejam diferentes do que seriam se não tivesse os ônus que têm.
Vocês entendem o que quero dizer? Tenho um exemplo para ajudar: todos os anos, são premiados Diretores e Melhores Filmes. No caso, o Diretor sempre sobe para discursar nas duas categorias: na primeira, só, na segunda, com alguns atores. Mas nem sempre o mesmo diretor do melhor filme é o diretor premiado. Quem entender de cinema aqui sabe que isso, no fundo, causa espanto: ser diretor do melhor filme PRESSUPÕE ser o melhor diretor do ano. Não adianta argumentar: “Nada a ver, o filme às vezes é o melhor por causa dos atores ou até mesmo do roteiro, e não só por causa do diretor”, porque esse argumento é furado. O filme É o diretor, amigos, simplesmente porque o Diretor é o ÚNICO responsável pelas cenas que você assiste no cinema. O filme como está na tela foi a forma que ELE visou contar a história. As atuações são todas influenciadas pela maneira como o diretor quer seus personagens (como o Tarantino brilhantemente falou ontem em seu discurso), e o roteiro chega ao telespectador não menos do que NA FORMA QUE o diretor desejar. O diretor faz o filme, amigos, o resto do staff, por mais brilhante e importante que seja, é apenas ajuda (e com isso, eu NÃO QUERO MENOSPREZAR os excelentes trabalhos que fazem, entendam o que eu escrevo). Amigos, em um plano ideal, não existe premiar filme sem premiar diretor e vice-versa. Ciente dessa equivalência, a Academia aproveita para esticar sua Política e estendê-la, várias vezes, a pessoas diferentes e que mereçam prêmios. Por isso, prêmio de Diretor para o Ang Lee e de Melhor Filme para Argo. Simplesmente porque ambos foram os melhores rebentos do Cinema em 2012, mas por motivos diferentes.
Pois bem. Dito isto, posso falar o motivo do texto: a Cerimônia ontem foi o maior fracasso e a maior decepção dos últimos tempos, sem dúvida nenhuma.
Por quê? Tudo ia bem, o host estava ótimo, as apresentações também, os filmes eram bons e merecedores, tudo caminhava bem. MAS a Academia TINHA que ultrapassar a tênue linha entre Política e política e, assim, corromper a sua premiação. Ao pedir para Michelle Obama, esposa do Presidente Obama, fazer o anúncio mais importante da noite, preterindo Jack Nicholson (um dos mais grandiosos nomes do Cinema), ela conseguiu manchar a própria reputação. Fazendo isso, veio à tona a ligação política entre o Governo dos EUA e a premiação de uma Sociedade que se sabe, antes de tudo, mundial. Oras, uma das organizadoras do evento, eu fiquei sabendo depois, é filha de um membro da comissão apoiadora do Presidente, e por isso a Michelle estava lá, selando a presença da Casa Branca num evento que não tem absolutamente nada a ver com ela. Eu não deveria saber disso; isso não deveria importar.
Oras, na manhã dos Oscars mesmo eu entrei numa discussão com os meus pais para defender a credibilidade do evento. Minha mãe dizia que a Academia estava corrompida e que sofria influências externas que lhe impediriam de realizar a boa premiação. Eu falei que não, que por mais que às vezes as premiações fossem questionáveis, elas sempre eram fruto de uma Política válida e que tinham sua própria lógica, nunca motivadas por fatores externos ocultos. Minha mãe então falou “E por quê os três filmes favoritos tem o Governo dos EUA como heróis?”. Eu, sabe-tudo, respondi “Coincidência, oras”. (Detalhe: entramos nessa discussão porque eu sentia que A Vida de Pi ou Os Miseráveis devia ser o vencedor, mas que sabia que os favoritos eram A Hora Mais Escura, Argo e Lincoln).
Como, amigos, posso olhar para a mamãe agora sem lhe conceder a vitória na fundamentação, submetendo minha própria argumentação, sabendo que foi a Casa Branca quem anunciou o melhor filme? (Melhor filme este sobre atos seus.) Ang Lee recebeu Melhor Diretor, mostrando que, como eu, havia dissidentes dentro da própria Academia. Mas as influências externas podem ter falado mais alto, e por isso quem vai ser lembrado como o Melhor Filme será o escolhido pela Casa Branca.
Por mais que tudo isto que eu disse possa estar errado e, num plano onde as verdades reais das coisas sejam realmente auferíveis, Argo tenha sido o melhor filme, não creio que se possa negar: a impessoalidade, tanto da Academia como da Casa Branca, foram violadas. E aos olhos do mundo inteiro, o Oscar, em seus minutos finais, virou O Show do Governo Americano.
Nunca, em todos os anos vivi dentro do cinema, vi Jack Nicholson, um dos meus ídolos cinematográficos, sequer dividir a cena com uma figura política tão limitada nacionalmente quanto a mulher do Presidente. Por que, então, tenho que assistir isso acontecer no evento que diz como são as coisas de cinema na vida real?

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Coração de Lutador, parte 2.


Subtítulo:  O Lutador Paciente. 

Claro que existe sorte. Essa nunca foi a discussão. Sorte é jogar algo ao acaso e ver, por um capricho do destino, esse ato desinteressado frutificar o bom resultado. É, em palavras mais adequadas, despejar um soco ou um chute e conseguir um nocaute. É inegável a influência de golpes de sorte em qualquer esporte.
O problema é que aquele não foi um. Não existem golpes de jiu-jitsu bem sucedidos por sorte. Uma finalização de jiu jitsu, o Treinador havia lhes dito, é um micro cosmo. Uma espécie de ecossistema sensível, onde cada etapa de seu complexo é essencial para o bom funcionamento da alavanca final. Mais especificamente, a chave de tornozelo que o Lutador utilizara para ganhar a sua última luta  é uma submissão que necessita a imobilização de todos os músculos contidos na perna do oponente, os bons manuseio e colocação de rigorosamente todos os membros do aplicador, movimentação de quadril e, a cereja do doce, boa administração do peso de ambos os corpos. Com todos esses fatores, pode alguém dizer que foi golpe de sorte? Não, o Treinador lhes dissera, não foi golpe de sorte.
Enrolando a bandagem nos punhos do lutador, o Treinador levantou os olhos para mirar seu pupilo.  O rapaz estava cabisbaixo, seus olhos fora de alcance. Injustiçado. Humilhado.
Cortaram sua entrevista. Quando um lutador vence seu combate, é de regra que ele seja entrevistado ao vivo. Seja para oferecer agradecimentos, seja para desafiar novos oponentes, seja para fazer declarações, eles sempre são entrevistados. É quando o público pode dar uma boa olhada no homem que empunha as luvas, admirar o artista por trás da obra. Assim como ver os machucados que ele sofreu na consecução de sua missão, claro. Mas na hora, na frente de milhões de pessoas, a entrevista de seu pupilo foi cortada; comerciais foram exibidos por cima. Ninguém em casa viu seu rosto, ninguém ouviu o que ele tinha a dizer. Ele foi suprimido.
A mesma coisa na coletiva de imprensa que se seguiu ao evento. O Dono da promoção parecia disposto a evitar assuntos que envolvessem o jovem lutador, quase como se quisesse que ele passasse despercebido. O único momento em que o Dono referiu-se aos eventos que transcorreram na luta do lutador foi quando criticou a atuação médica que permitiu a sua permanência no combate. Alegou que iria responsabilizar o médico pela imperícia, garantiu que tomaria providências legais. Foi quando aproveitou para tomar a iniciativa de desrespeitar diretamente o jovem: disse que tudo não passou de um descuido do oponente derrotado, o então veterano e favorito pelo público. “Relaxou demais”, “erro mundano”, foram as razões para a derrota. E de repente, o foco de toda a construção jornalística a respeito da luta não era mais a vitória do jovem, mas a derrota do veterano. O “erro bobo”. O Dono garantiu que aquele pequeno embaraço não era motivo para atraso da  eventual disputa de cinturão do favorito, não. Mais uma ou duas vitórias e tudo aquilo estaria esquecido. Quanto ao lutador jovem? Simples erro médico. Vencedor casual. Rebento da sorte. “Vocês sabem do que eu estou falando”, foi concluindo o Dono, “qual é, aquele moleque passou mais tempo sendo atendido pelo médico do que fazendo algo realmente impressionante na luta. Sim, isso é um fato. Tanto, na verdade, que deveriam chama-lo de Paciente, sabe? É, o Paciente. Aí está um apelido para aquele cara”. E assim encerrou a coletiva, e assim foi como o jovem lutador ficou conhecido nas raras ocasiões em que era mencionado pela mídia: O Lutador Paciente.
Num esporte de apelidos e personalidades que assustam, o vencedor ficou tido por uma espécie de vítima.
Aquilo doeu. Aquilo afetou profundamente o protegido do Treinador, provocando mudanças por todos notadas na academia que frequentavam. O Lutador Paciente não sorria mais. Antes um viciado nos fóruns de internet sobre vale-tudo, ele não abria mais o computador. Não se aguentava ver suplantado sem nem saber por quê. O Treinador sabia o quanto ele se dedicava, sabia o quanto ele estava disposto a ralar pelo ofício. Problemas de saúde, dores, cansaço, dedicação exclusiva, a vida de quem quer galgar os degraus do sucesso não é fácil. O mínimo que se pode esperar é algum reconhecimento pelos bons resultados colhidos no caminho, mas nem assim foi recompensado o Paciente. O Treinador sabia que a vida dava seus socos, mas ele não era insensível a noção de que com seu pupilo ela parecia estar exagerando. Embora não hesitasse em proferir palavras de afeto e motivação, o Treinador sabia o quão difícil seria para qualquer um aceita-las, frente a provação tal qual a do jovem.
O que ele fez após a luta? Talvez a coisa mais insana de sua vida inteira.
Com o salário gordo que recebera com as premiações da noite, o Lutador Paciente se viu apossado da maior fortuna que já tivera na vida. Ainda que não passassem de 20 mil reais, aquilo foi o suficiente para que ele se convencesse a largar os dois empregos que equilibrava e se entregasse ao treino das artes marciais 11 horas por dia. A maior parte do dinheiro, o lutador paciente usou para matricular seus dois filhos na melhor escola que a cidade conhecia, assim como para comprar-lhes roupas que pudessem utilizar lá dentro ( boas roupas, luxo até antes desconhecido por sua família). Ele quitou todas as suas dívidas, desde seu aluguel até suas mensalidades com o Treinador. Reservou algum dinheiro para que os filhos pudessem sair para jantar ou ir ao cinema de vez em quando, assim como uma quantia para o transporte deles à escola. Para si, não reservou nem isso: ia a pé todos os dias. A única coisa que comprou para si com todo aquele dinheiro? A maioria das pessoas não acreditava quando lhes diziam, mas para si ele adquiriu apenas um novo par de luvas. Um novo par de luvas.

Era a noite de sua segunda luta, e as bandagens que o treinador lhe vestia eram velhas e gastas. 4 meses haviam se passado desde sua luta de estreia e o Lutador Paciente estava com sua conta bancária zerada. O treinador lhe acautelara quanto à rápida utilização do dinheiro; as mensalidades das crianças eram excepcionalmente caras. O Lutador Paciente apenas o olhava com um semblante de quem não compreende.
“Não se preocupe”, tentou conversar o treinador. “Você vai vencer hoje”. O lutador olhou e sorriu.
O Treinador sabia que a situação do Paciente era precária; por algum motivo, a sua segunda luta foi acertada com o Guardião do Portão. Guardiões de Portão ( os Gatekeepers) são os melhores lutadores da categoria que já tentaram e fracassaram em lutas contra campeões, mas que não possuem popularidade o suficiente para tentar outra vez. Acontece que eles adquirem a alcunha por serem anormalmente melhores que os demais lutadores da categoria, mas ainda assim incapazes de vencer o campeão. Por isso, adquirem o status de segundo-melhor e enfrentam os outros pretensos desafiantes em ascensão antes do campeão. Infelizmente, os gatekeepers costumam ser lutadores detestados pelo público, simplesmente porque lutam bem demais e costumam vencer desafiantes mais carismáticos em lutas técnicas e com estratégias repetitivas. Em resultado, suas lutas não são muito interessantes e acaba que os desafiantes derrotados terminam minguando após serem derrotados. No caso do Lutador Paciente, o Treinador imaginava, as coisas seriam ainda piores se ele perdesse.
Tendo em vista a antipatia que o Dono lhe dirigia, era quase certo que com aquela derrota o Lutador Paciente seria chutado para fora da promoção para sempre, e ainda com o ônus de ter participado de uma luta que pouca gente se interessou por assistir. O Treinador não se  surpreenderia se ficasse sabendo que o Dono fizera isso de propósito; que montara aquela luta pensando exclusivamente na obliteração do Lutador Paciente. Este, para evitar maiores desentendimentos, fora indiretamente coagido a aceitar a luta. O pior de tudo? Se perdesse aquela luta, a sua luta anterior finalmente seria concretizada como mera brincadeira do destino, e ele acabaria saindo da maior promoção de MMA do mundo embaraçado e sem nada para mostrar. Foi tudo um plano. Desde a maneira como o Dono se portara na coletiva de imprensa que se seguira à última luta até o arranjo da seguinte, pensava o Treinador.
- Eu preciso dessa vitória, treinador- falou, subitamente, o Lutador Paciente.
- Sim.
As bandagens, agora quase terminadas, apertavam os punhos do lutador. Apesar do isolamento acústico da sala, o som da plateia lá fora ainda conseguia encontrar seu caminho até os ouvidos dos dois. A sala tinha um ar tenso.
- Acho que é verdade o que dizem. Não importa qual seja, só há um desafio maior do que o maior desafio que um homem possa encontrar: o seguinte a esse.- disse o lutador.- Agora eu vejo. E eu estou cansado, treinador. Eu estou cansado.
“Tenho acordado cedo, muito cedo. Eu acordo bem antes de o sol nascer e me dedico até bem depois dele ter-se posto. Às vezes eu fico tão cansado que eu não consigo entender comandos simples, sabe? Às vezes eu fico tão cansado que a minha mente se perde no meio das conversas mais mundanas, eu não sei se o senhor sabe do que estou falando. As dores que sinto já estão tão arraigadas que eu nem as trato mais, aprendi a conviver. Chego a esquecer que elas estão lá, mas decerto não me lembro mais de tempo em que não as possuísse. Meu tronco e braços são ralados dos quimonos e das lutas de chão. Minhas mãos tornaram-se calosas demais para carinhos. Minhas pernas estão sempre com algum roxo, resultado do calejamento que as fazem ficar mais fortes. Dormir e comer não são mais prazeres, são artifícios de que devo me aproveitar para maximizar meu desempenho. O conforto de minha cama eu ignoro, para que levantar cedo não seja tão difícil, e a comida é sempre a mais saudável e sem-graça possível. Quando não estou me dedicando, me esforço para não gastar energia. Converso pouco, não saio muito de casa. Eu não aguento mais, treinador.”
“Mas, ainda assim... Eu sei o que estou fazendo. Pelo menos, é o que me digo quando estou mais desesperado. Dizem que a vida não exige mais do que podemos fornecer, e se esse ditado for verdade tenho certeza que se esqueceram de acrescentar que o que podemos fornecer nem sempre é algo de que efetivamente já dispomos. Por isso é importante que nos esforcemos todos os dias para ir além do que fomos no dia anterior. Para aqueles que perseguem sonhos, ou se vive esforçando-se ou morre-se fracassando.”
“Se eu não vencer essa luta hoje, treinador, eu terei que pegar minhas coisas e voltar para casa, para minha vida antiga. Todo o sangue que eu já derramei terá sido em vão, e eu sei disso desde o final da minha última luta. Sabe, quando eu percebi que o Dono estava contra mim, eu percebi também que não haveria segundas chances. Eu não sei por que ele não gostou de mim, sou só mais um sujeito tentando chegar no topo. Mas quem sabe isso não é um sinal? Esperei minha vida toda pelo sinal que indicaria que talvez eu pudesse fazer alguma diferença no mundo. Acho que todos nós somos assim, não? Só nunca imaginamos que esses sinais geralmente vêm na forma de um soco do destino. E é aí; é aí que nós temos que olhar bem dentro dos nossos corações e nos perguntar: será que posso sobreviver ao próximo round? Se nós aceitarmos a derrota, estamos aceitando que a vida nos coloque onde ela bem entender; perdemos as rédeas de nós mesmos. Mas se, e só se, nos conciliarmos com a ideia de que para sermos o vencedor devemos suportar a dor, então... Então eu acho que nós temos uma chance. Aquele poeta já dizia, não? ‘Tudo vale a pena se a alma não é pequena’. Agora eu entendo. Agora eu entendo treinador, e eu concordo. Há 4 meses eu tenho suportado a dor. Me engalfinhei com ela, apertei tanto quanto fui apertado, esperneei e gritei, já fiz pedidos e promessas de joelhos. Hoje eu acredito que derramar sangue não é o problema; o problema é não derramar o suficiente.”
“O resultado da luta de hoje é muito importante, treinador. E eu não peço pela vitória: eu peço a Deus pelo meu melhor. ”
Nesse momento as portas da sala se abriram.
- Tudo pronto? O Paciente entra em 5.- avisou o homem de uniforme.
O Lutador Paciente o mirou e, calmamente, aquiesceu com a cabeça. “Estou pronto.”

O Guardião do Portão era um lutador assustador. Não era um brutamontes, não. Tinha um físico maior, mais largo e menos musculoso que o outro oponente do Lutador. Aparentava aquele tipo de força difícil de se superar, justamente por ser naturalmente difícil de se igualar. Justamente por isso, a sua tática era tão simples quanto era eficaz e arrasadora: ele derrubava o oponente e o esmagava contra o chão. Com o passar do tempo, cobria-o de golpes e cansava-o inutilmente com a magnitude de seu tamanho. A luta se transformava então em teste de resistência para os lutadores adversários, que logo tinham o espírito quebrado para então sucumbirem sob socos ou cotoveladas violentíssimas. E agora, o Guardião mirava o Lutador Paciente com seu olhar inescrutável, atemorizante, do outro lado do octógono.
Fazendo jus ao seu apelido, o Lutador Paciente exibia uma face que misturava calma, ameaça e determinação. O Treinador se impressionava como de repente o apelido “Lutador Paciente” parecia ter se tornado... apropriado.
A luta teve início, e os lutadores se aproximaram. Tocaram as luvas em sinal de respeito e tomaram suas posições de combate. Após alguns momentos se estudando, o Lutador Paciente tentou quebrar a concentração do oponente com jabs rápidos. O oponente esquivou-se andando para trás. O Lutador Paciente cessou ofensiva, aguardando contra-ataque. O oponente voltou a aproximar-se, um desafio. O Paciente aproveitou para dar um chute na perna do oponente. Desapercebido,  oponente acabou levando o golpe. O Lutador, por reflexo, tentou repetir; caindo na armadilha do adversário. No instante em que sua perna encostou na do Guardião, este rapidamente a agarrou com um braço enquanto o outro cruzou o ar em direção ao rosto do Lutador Paciente. O soco atingiu precisamente o seu queixo e, sem ter como se apoiar, o Paciente caiu de costas no chão.
No solo, o Lutador Paciente necessitou alguns segundos para chacoalhar a tontura; tempo mais do que o suficiente para que o Guardião montasse em cima dele e começasse a desferir socos. O público, tão numeroso quanto na última luta, foi ao delírio. O juiz se aproximou para ver o estado do Lutador Paciente, e ao ver que ele ainda se defendia com diligência, não interrompeu a luta. O Lutador, enquanto isso, sofria com a enxurrada de golpes que o Guardião descia sem pena. O Treinador, lá fora, berrava comandos que não sabia se eram escutados. De repente, o oponente mudou a estratégia e puxou um dos braços do Lutador Paciente, tentando uma chave de braço.  Na mesma hora, este, percebendo a iniciativa, ergue-se na medida em que seu braço era puxado e conseguiu rolar para fora do golpe, separando-se do oponente. Ambos se levantaram, e o Lutador pôde notar o sangue que vazava de ambos seus supercílios. Frustrado, cuidou de abaixar a guarda para se prevenir contra outras investidas baixas. O Guardião, entretanto, deu um pequeno salto agarrou as pernas do Lutador com tanta força que este foi jogado contra a grade e arrastado para o chão. Cercando-o contra a grade, o Guardião conseguiu espaço o suficiente para dar algumas cotoveladas. Mais uma vez o árbitro se aproximou para ver se deveria parar a luta, e mais uma vez decidiu não intervir. Faltavam 30 segundos para o fim do round, que o Lutador passou apenas sobrevivendo às investidas do adversário.
No entre-rounds, enquanto o Stitcher limpava o sangue de seu rosto e passava vaselina em suas feridas, o Lutador recebeu ralha do treinador.
- O que diabos você pensa que está fazendo?!- gritava, preocupado. – Entregando chutes para ele te derrubar, oferecendo a grade, errando os sprawls! Não foi para isso que treinamos! Onde você está com a cabeça, rapaz? Não está vendo que com o seu desempenho nesse round, você vai ter que submeter ou finalizar a luta para ganhar?! Porque com certeza na pontuação dos juízes você está perdido!
O Lutador, embora transparecesse um pouco de nervosismo, tentava exprimir calma. Pediu ao Treinador que se acalmasse, pois estava tudo sob controle. Então, o árbitro veio e mandou todos que não os lutadores se retirarem do octógono. Enquanto saía, o treinador gritou: “Como assim sob controle?! O que você tem em mente?!”. O Lutador olhou-o, sorriu uma ilusão de sorriso e voltou sua atenção ao oponente.
 Com o início do segundo round, o Guardião se aproximou mais tranquilo, procurando luta. Encurtou a distância com uma sequência de jabs, mas o Lutador resguardou-se procurando mais espaço. O Guardião, sorrindo perante o medo que incutira na presa, buscou-o novamente com mais jabs, ao que o Lutador respondeu da mesma forma. Mais decidido, o Guardião tentou um dos mais fortes golpes de punho, o mata-cobra. O Lutador baixou-se e revidou com um curto jab no rosto do oponente. Percebendo a insegurança do oponente, o Guardião tentou uma rápida aproximação para buscar a cintura do outro e consequentemente derrubá-lo. O Lutador, para a surpresa do público, aplicou um chute reto que interrompeu e afastou o oponente. Surpreso por nunca ter sido interceptado daquela forma, o Guardião resolveu lutar seguro novamente. Afastou-se um pouco e sinalizou para que o Lutador viesse pegá-lo. Após curta meditação, o Paciente atendeu seu pedido e se aproximou, lançando um direto de direita quando teve a oportunidade. O Guardião passou por baixo e agarrou a cintura do oponente. Lá fora, o Treinador tapou o rosto com a mão em sinal de decepção. “Estava indo tão bem!”.
Forçando a derrubada, o Guardião pulou abraçado com a cintura do Lutador, e ambos caíram. Para surpreender o público novamente, o Lutador conseguiu inverter a posição antes que o Guardião ficasse tranquilo e conseguiu montar nele. Aproveitou a oportunidade para se levantar e se afastar.
O Guardião, apesar de assustado com a velocidade do oponente em se levantar, ficou contente por ver que ainda era respeitado por sua luta no solo. Levantou-se e decidiu atacar com fúria. Aproximou-se rapidamente e lançou outro mata-cobra. O Lutador, em resposta, saltou alguns centímetros para trás, apenas o suficiente para que o golpe lhe raspasse a ponta do nariz, e contra-atacou com uma joelhada voadora em máxima velocidade. O golpe acertou o queixo do Guardião do Portão, e este simplesmente amoleceu e caiu ao chão.
O silêncio tornou-se opressivo dentro do recinto. O Lutador conseguia ouvir sua própria respiração acelerada. A gigantesca multidão de espectadores ficou muda por alguns instantes, vendo o oponente apagado. O Lutador não se aproximou do adversário para cobri-lo de socos; apenas aguardou. O árbitro, percebendo sua deixa, se aproximou e notou que o Guardião estava positivamente nocauteado. Logo sinalizou pelo fim da luta e levantou o braço do Lutador Paciente. A multidão explodiu a arena em gritos, aplausos e assobios no mesmo instante.
O Treinador, não acreditando, correu para entrar no octógono, abraçando o pupilo. Nunca imaginaria um desfecho como aquele para a luta! Olhando na direção da diretoria do evento, pôde notar que até o Dono batia palmas, impressionado. Conquistado.
- Meu Deus, esse cara é tão assustador! – gritava um dos comentadores para o mundo todo- Ele vai ser o próximo campeão mundial!!
Mais uma vez recebendo os filhos com um abraço, o Lutador preparou-se para sua entrevista. Só que dessa vez, ele sabia que não seria cortada.
E a multidão prosseguiu para sempre, naquele momento, com sua torcida feliz.

Fim da Parte II

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Coração de lutador, parte 1


   Eu ainda posso lutar, doutor.
As luzes eram ofuscantes dentro do octógono. Nada de admirar-se, até porque ali era o ponto de convergência de todos os holofotes. O lutador não conseguia manter-se imóvel, e no fundo de sua mente o médico procurava alguma distinção conclusiva entre inquietude provocada por adrenalina e convulsões causadas por trauma; seu raciocínio acelerado não conseguia, entretanto, harmonizar diagnóstico.
Chamado por um colega seu para substituí-lo naquele evento de MMA, o médico era verdadeiramente de primeira viagem naquele mundo dos diagnósticos improvisados. A bem da verdade pensava não se tratar aquilo mais do que palpite abalizado. Como examinar um paciente quando ele está saltitando na sua frente, falhando em ficar parado ou sequer olhar para alguma direção que não a do seu oponente? O médico estava nervoso, mas tentava se manter objetivo; infinitas pessoas lhe assistiam naquele momento. Estava numa arena com uma plateia de mais de 30.000 pessoas, fora o meio milhão que acompanha em casa, e, apesar de ser um médico conceituado, estava acostumado a atender dentro da tranquilidade de seu consultório. Além disso, aquele era o primeiro evento de lutas que assistia na vida.
Apesar da popularidade que aquele tipo de evento viera ganhando nos últimos anos, o médico nunca se sentara para assistir nada a respeito. Todo mês, uma ou duas edições eram transmitidas, mas ele nunca assistia. No seu conceito, aquilo não era mais do que violência gratuita; uma espécie de pão-e-circo para os mais descompromissados. Ele não concebia achar conteúdo em um esporte que coloca dois seres humanos para se digladiar até que um deles falhe em apresentar reação;  seja por meio das concussões infligidas por golpes sobre-humanos, seja por meio dos estrangulamentos, das torções... Barbaridade. Não sem um pouco de desgosto aceitara preencher a vaga de seu amigo, mas lhe devia um grande favor e realmente não havia meio de driblar o pedido. Infelizmente, logo na segunda luta da noite um dos lutadores foi vitimado por uma quantidade satânica de cotoveladas e, apesar de eventualmente se desvencilhar da investida do adversário, uma pequena fonte de sangue agora fluía de seu supercílio esquerdo, enquanto um inchaço enorme vinha à luz na mesma lateral de seu rosto. Desnecessário dizer que logo o árbitro suspendeu a luta e chamou o médico para avaliar a condição do lutador para prosseguir.
Com passos rápidos o médico subiu os degraus para dentro do octógono e procedeu à avaliação do paciente. Agora, de perto, as coisas pareciam ainda mais feias do que ele  imaginava. O inchaço formara uma esfera de uns 5 cm de diâmetro, enquanto o sangue fluía farto do corte; com a somatória das duas coisas, resultava que o lutador não conseguia enxergar com o olho esquerdo. O médico olhou para o cronômetro do combate, tomando ciência de que estavam no final do segundo round e penúltimo round. Faltavam aproximadamente 6 minutos para o final da luta, e o médico achava que aquelas lacerações impossibilitavam o combate de continuar.
   Eu ainda posso lutar, doutor- sussurrou o lutador.
O médico estava terminando de examinar o corte no supercílio e, em decorrência da sua proximidade com o lutador, ele sabia que nem o câmera man atrás deles conseguira ouvir aquilo. Discretamente o médico olhou o telão da arena, onde eram visíveis suas costas e um pouco da face desfigurada do lutador. Voltou suas atenções ao paciente.
   Vou ter que parar essa luta, senhor. - retrucou o médico. Suspeitava de que aquele inchaço era fruto de uma fratura no osso orbital, o que era sério. Mas assim que a última sílaba escapou por entre seus lábios, o lutador, num ato reflexo, deu um passo à frente, exprimindo voluntariedade.
   Não! Doutor, eu posso lutar! - ele falou, desesperado de tal forma que o médico se viu pego de surpresa.
   Desculpe-me senhor, mas não posso deixar essa luta continuar. Um pedaço do seu supercílio está pendendo do seu rosto e eu creio que haja uma fratura no seu crânio; eu estaria maluco se deixasse essa luta prosseguir- respondeu o médico, tentando exprimir compaixão sincera, ainda que taxatividade. No momento em que ia dar um passo para trás, o lutador segurou seu ombro.
   Doutor, por favor! Não pare a luta, eu vou vencer!- ele falou. Não estivesse seu olho esquerdo oculto pelos ferimentos, o médico sabia que um olhar de súplica estaria formado.
O médico olhou rapidamente o adversário do seu paciente. Ambos eram homens grandes e musculosos, mas o oponente era um brutamonte consagrado nos grandes circuitos, com uma quantidade impressionante de vitórias em seu cartel e que rumava à disputa de cinturão. Seu paciente, por outro lado, era um jovem bem mais inexperiente que fora convidado para participar do evento em substituição a outro lutador que se contundira um mês antes da luta. Era a sua primeira vez dentro da grande promoção, e se perdesse seria muito bem sua última. Isto, ao menos, foi o que lhe disseram momentos antes de ser convocado para avaliá-lo.
   Acredite, filho, é para o seu próprio bem. Se eu não parar esta luta agora, posso prejudicar sua vida para sempre.- argumentou o doutor.
   Doutor, se o senhor parar essa luta eu nunca mais terei a chance de trabalhar nesta promoção, e tudo para o que me esforço todos os dias terá sido em vão! – respondeu o lutador, automaticamente- Se o senhor parar essa luta, minha vida será prejudicada para sempre com certeza! Por favor, doutor, eu tenho dois filhos pequenos para quem sou tudo no mundo, por favor, se eu fracassar hoje, não só eu não terei como pagar sequer a condução deles para a escola como também jamais me perdoarei por não ter feito tudo o que estava ao meu alcance!
De repente, o médico sentiu seu coração pesar. Olhando novamente o adversário de seu paciente. Ele parecia inteiro, parecia bem. Sorria e flertava com o público enquanto o médico se preocupava com a saúde de seu paciente. Leigo no esporte como fosse, não parecia ao médico haver jeito de o jovem vencer a luta.
   Doutor, o senhor não sabe por quanta coisa já passei para estar aqui hoje.- o lutador de repente tentou adotar um ar mais comedido, buscando parecer mais razoável, embora fosse incapaz de conter as suas emoções profundas - Eu amo lutar. Eu amo com paixão, paixão que até uma ex-esposa já me custou. Mas meus filhos não me deixaram, doutor. Eles me acham herói, doutor, mas o senhor sabe que não existem heróis que precisem equilibrar o papel de pai, 2 empregos de salário-mínimo e o treino de 3 artes maciais.  Mas eu tenho certeza, doutor, um homem bem sucedido como o senhor, eu tenho certeza que o senhor sabe o que é precisar vencer na vida. Eu tenho certeza que o senhor sabe o que é ralar e ter que colocar tudo na mesa. Eu sei, doutor, eu sei que o senhor me entende. Esses ferimentos, eles podem me matar, doutor, mas só se por causa deles eu não puder mais lutar. Só assim eles podem me matar!- concluiu o lutador, e o médico não sabia se eram lágrimas em seus olhos ou apenas o brilho geral de suor que lhe permeava o corpo.
   Mas como você pretende vencer, essa luta? Está terminando o segundo round e o outro cara parece que acabou de entrar no octógono. Você, bem, parece que você foi atropelado por um caminhão... - inquiriu o médico, descrente.
Botando a mão sobre o peito esquerdo, o lutador respondeu:
   Coração, doutor. Homens são definidos pelas adversidades que encontram, e eu tenho certeza de que as minhas me fazem maior do que o meu oponente. E eu posso lhe mostrar, o senhor só precisa permitir.
Subitamente, o árbitro apareceu ao lado dos dois.
   E então, doutor? - perguntou ele.
De repente, o médico lembrou que todos os olhos do mundo estavam em sua pessoa. O árbitro, o lutador, a câmera, os fãs, todos aguardavam pelo seu parecer.
Os seus olhos caíram na mão que o seu paciente ainda tinha sobre o peito, e de repente ele se viu limpando o sangue da face dele e declarando:
   Isso não é nada, árbitro. Esse daqui luta por mais 5 rounds.
As sobrancelhas do árbitro, em espanto, esticaram-se até quase a nuca, e ele perguntou se o médico estava certo do parecer. Contrariando seu próprio bom-senso, o médico forneceu sua palavra.


Sentado em seu lugar de volta, o médico assistiu o restante da luta na ponta da cadeira. Honestamente, arrependera-se da própria decisão no segundo em que saíra do octógono; mas procurava concatenar o peso em sua consciência numa torcida introvertida pelo paciente. Assistiu com tristeza enquanto, pelo restante do minuto final do segundo round, o jovem lutador retomou a surra nos exatos termos de antes da intervenção do árbitro.
Durante o minuto entre-rounds, sentou-se ao seu lado o homem que o médico reconheceu como o Dono do evento. Embora estivesse trabalhando para ele, nunca tivera a oportunidade de falar-lhe diretamente.
   Aquele sujeito não deveria ter voltado para luta- falou o Dono, sem que houvesse sequer algum cumprimento. Apesar da falta de educação, o médico manteve-se profissional.
   Não foi o que a minha análise mostrou- respondeu.
   Foda-se sua análise. Você impediu que o meu lutador conseguisse uma vitória por parada médica e agora eu estou achando que ele vai conseguir uma merda de uma vitória por decisão dos juízes. - falou o Dono.- Se isso acontecer, o meu lutador ainda vai precisar de mais uma ou duas lutas para convencer o público a querer vê-lo enfrentar o campeão. Sabe o quanto eu deixo de lucrar assim? Esse esporte precisa de estrelas, doutor.
O médico não conseguia acreditar na grosseria do homem. Permaneceu calado, no entanto, apenas observando.
   Só vim aqui para lhe avisar, doutor, que se o senhor não aproveitar esse minuto entre-rounds para parar a luta, o rapaz vai perder de qualquer forma E eu ainda vou processá-lo pelos danos que ELE sofrer, respaldado juridicamente pela sua negligência médica.- os olhos cruéis do homem queimavam o rosto do médico, ameaça que eram.
Tentando manter a calma, o médico procurou usar todo o seu sangue frio para mentir:
   Minha decisão médica satisfaz todos os parâmetros de análise exigidos pela comissão médica do esporte, e ela é inatacável. – disse ele, ao passo que imaginava em sua cabeça a nota que os membros da comissão conseguiriam numa competição de salto a distância com o pulo que devem ter dado de suas cadeiras ao ver as condições do lutador que ele deixara prosseguir lutando. - Não posso impedi-lo de me processar, mas posso com certeza vencê-lo no tribunal se o fizer.
Por um momento, os dois se olharam. O médico não estava certo se seu blefe fora bem sucedido, mas o dono do evento com certeza parecia menos agressivo.
   Agora, por favor, se o senhor me der licença, pretendo apreciar o restante da luta. E prepare-se para uma surpresa nesse round final- concluiu o médico, lançando uma previsão ousada, apesar de ser totalmente ignorante no assunto dos combates. O homem pareceu se enfurecer profundamente com aquele pequeno soco argumentativo.
   Vê-lo-ei nos tribunais, doutor.- ameaçou o homem, enquanto se levantava.- Tudo isso porque foi com a cara de um lutadorzinho-escada... - saiu então, resmungando.

O terceiro round começou e o lutador brutamonte foi, à passos largos, em direção ao lutador jovem, mais faminto do que nunca pela vitória. O médico sentiu seu coração acelerar no peito. O seu paciente tentou acertar um soco potente no lutador no favorito, mas com os reflexos de um gato, o alvo esgueirou-se por baixo do soco e, fazendo as entranhas do médico decolarem em seu abdome, levantou-se com um gancho de esquerda que acertou o queixo do jovem e uma martelada de direita que o jogou ao chão sem cerimônias, quase apagado. A plateia levantou-se de seus lugares e clamou insanamente. O árbitro correu para perto, não parando a luta por muito pouco. O médico percebeu que fora por causa do olho esquerdo fechado que o lutador fora incapaz  de ver o golpe chegando, e aquilo o sufocou por dentro.
Para finalizar a luta, o lutador mais experiente correu em direção à cabeça do oponente, pronto para acertar mais socos e conseguir um nocaute. Ao que se aproximou, o médico ergueu as próprias mãos numa atitude defensiva automática, esforçando-se para assistir o que viria em seguida.
De repente, o lutador estirado no chão esticou uma mão, segurando a canela do oponente, e girou sobre o próprio quadril para tentar o que o médico julgou ser uma rasteira. Surpreendentemente, o que era uma rasteira tornou-se um complexo golpe de jiu jitsu que , criando uma alavanca extremamente dolorosa, fez com que o lutador mais bruto caísse ao chão fazendo uma careta de dor impressionante; pouco depois submeteu a vitória. O árbitro separou os adversários e levantou a mão do jovem lutador, que apesar da horrível contusão no rosto, vibrava como se fosse o homem mais feliz do mundo.
Logo subiu ao octógono a equipe de reportagens do evento, que rapidamente buscou entrevista com o vencedor. Subiram também os dois filhos de que o jovem lutador lhe falara, que abraçaram o pai às lágrimas, não tardando este a verter suas próprias. Durante a entrevista, o vencedor chamou seu oponente derrotado e abraçou-o longamente, ambos parabenizando-se pelo combate espetacular. Resquícios de ódio não havia.
Posteriormente, ao descer pelos degraus do octógono, ainda abraçado aos filhos, o lutador deteve-se por um momento para dirigir-se ao médico e apertar-lhe as mãos.
   Coração, doutor! - falou, emocionando-se novamente.
   Coração de lutador – completou lhe o médico, sorridente.
    
   Antes, o médico via a grade que circula o octógono como as grades de um zoológico, onde se expunha ao público o lado mais animalesco do ser humano, numa tentativa de unicamente lhe saciar o desejo por sanguinolência. Não mais. Após aquela luta, e todas as outras que se seguiram no decorrer da noite, ele aprendeu que a grade estava ali não para afastar o público da violência, mas os lutadores de todo o resto.
Advogados possuem escritórios, médicos possuem consultórios, artistas tem o palco e lutares têm a grade. É dentro dela que eles se apresentam, é lá que eles mostram o fruto de sua paixão e a extensão de sua dedicação. Ao longe, a plateia pode assistir-lhes para simplesmente satisfazer sua própria animalidade, ou pode assistir-lhes para apreciar a arte. A disputa, o combate, a determinação, a superação, a disciplina, a estratégia... O médico crucificava o esporte por não crer que houvesse conteúdo. Mas ele então o achou, e ele o achou como um homem que bate uma picareta no chão do deserto e descobre uma fonte rica de petróleo. É belo.
Violento?
A violência só existe quando os homens não devem lutar, e ainda assim procedem ao embate. Quando dois homens vivem a vida para disputar esse esporte, e se dedicam e se preparam todos os dias, e entram na arena com chances similares de vitória, não se trata de violência. Trata-se de disputa, de grandiosa disputa. O esporte é agressivo, mas violento? Lembrando-se do dono do evento tentando assustá-lo, e da ideia que o dono do evento tinha de que o estaria jogando um lutador-escada para ser assassinado pelo mais experiente, o médico percebeu que era inegável que de fato havia certa violência no esporte: colocar uma força imparável contra outra que se sabe não pertencer à sua frente; é violência. Mas não foi o que aconteceu naquela noite.