segunda-feira, 20 de junho de 2011

O Advogado

John Grisham parece ter sempre o mesmo a dizer quando o assunto é advocacia: é um trabalho insalubre.

John Grisham é um autor norte-americano, mas antes disso era advogado. Ficou famoso escrevendo thrillers com temática jurídica, de modo que quase toda a sua obra orbita ao redor de tribunais. Mas chegou à minha mão uma obra sua que, ao menos até agora, não é thriller nem tem ação. O nome do livro é O Advogado, e é também o enredo.

Michael Brock é advogado em uma dessas super-firmas de advocacia que só existem nos EUA. Está para se tornar sócio, passando assim a ganhar salários com 6 dígitos. Trabalhar 18 horas por dia não é mais problema para o homem, de apenas 30 anos; em dado momento, ele pondera que já deve ter trabalhado mais nos últimos 10 anos do que muita gente trabalha a vida toda. Ele é casado com Claire, uma cirurgiã competente e que passa tanto tempo fora de casa quanto ele. O divórcio é o poltergeist sentado à mesa da cozinha, esperando os dois lhe darem atenção. Em termos jurídicos, o amor sofreu os efeitos da decadência. Mike e Claire são mais um casal de sucesso profissional e fracasso emocional.

Um evento acontece durante um típico dia de trabalho de Mike: um sem-teto entra na firma com bananas de dinamite presas ao corpo e um revólver, e faz 10 reféns; Mike e outros figurões da firma. A situação é diligenciada nas primeiras páginas, e Mike sai ileso, com o sangue do sem-teto no rosto após uma ação arriscadíssima de um atirador de elite. O sangue pode ser visto de maneira metafórica, porque após o fato o advogado começa a se interessar pela situação dos sem-teto da cidade e sentir culpa por ver uma parcela de sua responsabilidade naquele mosaico. É quando Mike começa a repensar a sua vida, e John Grisham começa a centrifugar a bagunça que pode se tornar a vida dos gananciosos para separar o que, ao final das contas, é importante na vida de um ser humano e o que é ilusão. O resultado é um livro que parece contar desgostos da própria vida do escritor.

10 anos antes, Mike era um estudante de direito promissor numa faculdade de renome, com aspirações pela carreira pública, na defesa dos mais pobres, e apaixonado pela jovem Claire. Enquanto ele sente o frio que sua esposa evoca em relação ao trágico evento que poderia muito bem ter-lhe custado a vida, ele se pergunta onde tudo isso se perdeu. Em que momento a papelada do escritório fez sucumbir as cartas de amor. Com tristeza ele lembra que o motivo pelo qual Claire começou a fazer medicina foi ele: o sentimento de rejeição que o trabalho dele lhe incutia fez com que ela procurasse uma faculdade semelhante onde se enterrar. Agora eles tinham uma casa muito bem mobiliada, só que vazia. Em vários momentos Mike agradece por nunca ter tido filhos, porque ele não gostaria de dar-lhes o desprazer de ver a família se destruir da maneira como promete fazer.

Mike senta sozinho à noite na cozinha imaginando quando a conversa sobre o divórcio vai acontecer. Mike se vê preso na crista da onda que ele deu início. Mike almejava o salário de um sócio, e no caminho sacrificou todo o resto.

“Vamos para a California”, ele diz certo dia, de manhã., à esposa.

“Como assim?”, ela pergunta, levemente interessada.

“Vamos para a California. Só eu e você. Eu peço uns dias de folga do trabalho, você também, e nós partimos. Simples assim. Vamos? Hoje?”, ele explica, como se eles fossem jovens de novo.

“Não posso. Não dá”. Eles não são jovens de novo. Não há retorno.

Cuidado quando você estabelecer suas prioridades; cuidado para que a decepção que você vai sentir no futuro não seja muito grande. Existem mil escolhas que podemos fazer no decorrer dos dias, mas só uma é a correta. Vai ver você não escolheu a faculdade certa, vai ver você não escolheu a pessoa certa, vai ver você não mora no lugar mais apropriado, vai ver a sua família não é a mais adequada, sei lá. John Grisham fala das decepções na carreira jurídica, então imagine que no mundo nem os que amam sua carreira e se tornam milionários são capazes de serem felizes. Tudo é muito mais complexo do que você achava que seria.

Ainda estou para descobrir o que vai acontecer com Mike e Claire, talvez eu lhes conte quando souber.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cenas de uma Vara Criminal.

Pessoas.
Numa multidão recortada de uma cena cotidiana, o que você acha que sabe dos indivíduos que a formam? Você acha que seus anos de experiência, sua vivência, podem lhe dizer algo de alguém por um simples olhar? Uma parada de ônibus, uma praça de alimentação. Uma mãe com seu filho ainda de colo, um homem com sua pasta de documentos, um obreiro e suas ferramentas. Qual é o histórico das pessoas que integram o mosaico do cotidiano?
No meu cartório, diligenciei a assinatura de um homem magricela, cavanhaque e cabelos compridos. No início, ele entrou cabisbaixo e respeitoso na sala da Vara, afetado, e ao final do procedimento ele foi simpático, até estendeu a mão para um cumprimento de despedida; o que é raríssimo, evento quase semanal. Após lhe desejar bom dia, eu me voltei ao seu processo e fui ler o que o lhe levara a mau termo com a Justiça, ainda com a boa educação do rapaz em mente.
Onde trabalho, lido primordialmente com infrações criminais tolas, como dirigir sob a influência de álcool, uso de entorpecentes, injúrias e coisas do tipo. Alguns poucos processos são mais sérios, como o próprio tráfico de drogas, roubo e alguns homicídios em liberdade condicional; mas de mil processos, estes são apenas 60. E o processo desse rapaz era um desses.
Pela idade e aparência em geral, eu deduzi que se tratasse muito provavelmente de roubo a mão armada, ou, na pior hipótese, de tráfico.
Os artigos 213, 224, “a” e 121 do código penal são artigos que marcam o estudo de um acadêmico de Direito. São também os artigos que eu vi no processo. Quem sabe entende porquê, ao vê-los, não pude evitar se não erguer a cabeça em sobressalto, como se tivesse levado uma estocada, e procurei ao redor sinal de alguém que pudesse dividir a surpresa comigo. Ao ver que ninguém notara minha reação, fiquei a pensar que mão era aquela que eu apertera. Meu olhar ficou, instintivamente, na maçaneta da porta, como se o rapaz pudesse voltar a qualquer momento.
O artigo 213, em conjunção com o artigo 224, “a”, trata de estupro de menor; Pedofilia. Que foi o primeiro crime do rapaz, algum tempo atrás. Não se computa a invasão de domicílio que ele teve de realizar para estuprar a filha de uma mãe solteira. Mas calma lá, porque o artigo 213, sozinho, trata de estupro, que é outro crime que ele cometeu, um ano depois, ao invadir a casa de um casal no meio da noite. E a faca que ele afundou no peito do marido da moça quando ela resolveu gritar é o famoso 121; Homicídio.
Não é necessário dizer que nunca, nunca passou pela minha mente que um dia uma figura com uma ficha desse tipo ia apertar minha mão. Ia me desejar bom dia. Expressar um ato tão singelo de humanidade.
É quando eu lembro que todas as figuras vilanescas da história de que ouvimos falar eram também humanos. É quando eu lembro que tudo o que ouvimos chamar de “desumano” foi na verdade ato humano. Humano até demais.
Inocência é um frasco de que irrompemos ao crescer. Confiança é a ilusão que construímos para não ficarmos simplesmente assustados demais para sair de casa.
Já vi mortes por motivos tolos, como dinheiro para cachaça ou desentendimento acerca de um jogo de sinuca. Já vi mortes por motivo nenhum; é difícil dizer qual choca mais.
Tenho 19 anos e já sei que mãos que destroem famílias podem ser as mãos de qualquer um que se aproxima num dia como qualquer outro.
Se Deus existe, ele está sempre de preto, em luto constante, porque os piores monstros são também filhos dele, mais do que são irmãos para mim.