quarta-feira, 1 de junho de 2011

Cenas de uma Vara Criminal.

Pessoas.
Numa multidão recortada de uma cena cotidiana, o que você acha que sabe dos indivíduos que a formam? Você acha que seus anos de experiência, sua vivência, podem lhe dizer algo de alguém por um simples olhar? Uma parada de ônibus, uma praça de alimentação. Uma mãe com seu filho ainda de colo, um homem com sua pasta de documentos, um obreiro e suas ferramentas. Qual é o histórico das pessoas que integram o mosaico do cotidiano?
No meu cartório, diligenciei a assinatura de um homem magricela, cavanhaque e cabelos compridos. No início, ele entrou cabisbaixo e respeitoso na sala da Vara, afetado, e ao final do procedimento ele foi simpático, até estendeu a mão para um cumprimento de despedida; o que é raríssimo, evento quase semanal. Após lhe desejar bom dia, eu me voltei ao seu processo e fui ler o que o lhe levara a mau termo com a Justiça, ainda com a boa educação do rapaz em mente.
Onde trabalho, lido primordialmente com infrações criminais tolas, como dirigir sob a influência de álcool, uso de entorpecentes, injúrias e coisas do tipo. Alguns poucos processos são mais sérios, como o próprio tráfico de drogas, roubo e alguns homicídios em liberdade condicional; mas de mil processos, estes são apenas 60. E o processo desse rapaz era um desses.
Pela idade e aparência em geral, eu deduzi que se tratasse muito provavelmente de roubo a mão armada, ou, na pior hipótese, de tráfico.
Os artigos 213, 224, “a” e 121 do código penal são artigos que marcam o estudo de um acadêmico de Direito. São também os artigos que eu vi no processo. Quem sabe entende porquê, ao vê-los, não pude evitar se não erguer a cabeça em sobressalto, como se tivesse levado uma estocada, e procurei ao redor sinal de alguém que pudesse dividir a surpresa comigo. Ao ver que ninguém notara minha reação, fiquei a pensar que mão era aquela que eu apertera. Meu olhar ficou, instintivamente, na maçaneta da porta, como se o rapaz pudesse voltar a qualquer momento.
O artigo 213, em conjunção com o artigo 224, “a”, trata de estupro de menor; Pedofilia. Que foi o primeiro crime do rapaz, algum tempo atrás. Não se computa a invasão de domicílio que ele teve de realizar para estuprar a filha de uma mãe solteira. Mas calma lá, porque o artigo 213, sozinho, trata de estupro, que é outro crime que ele cometeu, um ano depois, ao invadir a casa de um casal no meio da noite. E a faca que ele afundou no peito do marido da moça quando ela resolveu gritar é o famoso 121; Homicídio.
Não é necessário dizer que nunca, nunca passou pela minha mente que um dia uma figura com uma ficha desse tipo ia apertar minha mão. Ia me desejar bom dia. Expressar um ato tão singelo de humanidade.
É quando eu lembro que todas as figuras vilanescas da história de que ouvimos falar eram também humanos. É quando eu lembro que tudo o que ouvimos chamar de “desumano” foi na verdade ato humano. Humano até demais.
Inocência é um frasco de que irrompemos ao crescer. Confiança é a ilusão que construímos para não ficarmos simplesmente assustados demais para sair de casa.
Já vi mortes por motivos tolos, como dinheiro para cachaça ou desentendimento acerca de um jogo de sinuca. Já vi mortes por motivo nenhum; é difícil dizer qual choca mais.
Tenho 19 anos e já sei que mãos que destroem famílias podem ser as mãos de qualquer um que se aproxima num dia como qualquer outro.
Se Deus existe, ele está sempre de preto, em luto constante, porque os piores monstros são também filhos dele, mais do que são irmãos para mim.

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