sexta-feira, 15 de junho de 2012

Injustiça Infantil


   “ O nome desse... é Salsicha. O nome desse... é Scooby”.
   3 ou 4 anos tem a menininha sentada à minha frente. Ela sorri timidamente enquanto minha colega de trabalho lhe apresenta os bonequinhos de pelúcia.
   “...Scooby”, ela repete. A sua voz é daquele tom meio esganiçado das crianças pequenas, ainda apenas conhecendo o vocabulário e o léxico. Ela sorri, enquanto toca o boneco de maneira contida.
   Cabelos desgrenhados, amarrados num faz-de-conta que quisera sua mãe fazer crer ser um coque.    Vestidinho vermelho quadriculado, eu só posso sorrir enquanto me indago se alguma festa junina aguarda essa menina. Minha colega se apressa em fazer aparecer um pedaço de bolo para a criança, que ainda tem um aspecto assustado no rosto.
   Assustado porque ela está no Fórum. Porque ela está numa Promotoria de Justiça, e porque sua mãe e sua tia estão, à portas fechadas, na sala da promotora. Nenhuma criança jamais conseguirá se sentir em casa aqui na Promotoria da Infância e da Juventude, até porque o mero fato de estarem aqui me fazem supor que elas nunca foram muito íntimas com o conceito de “Lar”. Talvez casa, talvez quarto, mas não do amor e do recanto que são a argamassa de um verdadeiro Lar.
   Há uma música toda especial, também. Ela enche o ar ao nosso redor, e tenho certeza de que, pelo volume em que a ouço, ela se espalha pelos corredores do Fórum, em direção aos ouvidos dos que passam; não é com estes que me preocupo. A música é o som dos gritos de suas parentes. Elas gritam contra a promotora... Entre si... Contra a criança... São gritos de raiva. Há algumas ofensas. A promotora chega a mandar alguém calar a boca; situações que envolvem criancinhas fazem-na descer do salto alto como qualquer ser humano.
   Antes absorto em meus afazeres, sou arrastado às entranhas medonhas do momento. Percebo que nunca ouvi gritos tão altos por aqui antes.
   Não há nenhum jargão jurídico nas frases da promotora. Apenas português claro, enquanto ela joga acusações contra mãe e tia da criança. Uma levou a criança da casa da outra, alegou maus tratos, não queria devolver, a outra correndo atrás se sentindo injustiçada. “A criança teve dor de dentes”, alguém afirma. Maus cuidados, agressões, abandono... Meu Deus, mesma rotina.
   Observo a criança novamente. São dela os ouvidos com que me preocupo; eu sou mais velho e já ouvi muita coisa nessa vida. Mas os ouvidinhos dela, menores e mais aguçados que os meus até, não sei como estão fazendo seu coraçãozinho sentir. Certas conversas não deveriam chegar ao ouvido dos menores; se ninguém se entende numa briga, quem vai explicar para uma criança por que a família dela reitera esse comportamento, tanto em casa como na rua.
   A perninha direita da criança está toda engessada. Desde o pezinho até acima do joelho; o gesso escala a perna dela como uma serpente. Eu olho novamente a porta fechada, acho que tenho a cara fechada também. Por trás dela, a promotora e as parentes da criança ainda discutem bem alto.
   “O que houve com sua perna, garotinha?”, pergunto.
   Ela me observa por um momento, antes de abraçar o Salsinha e o Scooby, e responde: “Caí”
   “Caiu de onde?”
   “... Da rede...” ela responde, baixinho.
   Eu olho a porta novamente, como se ela tivesse algo a ver com tudo isso. Duas mulheres aparentemente interessadas na criança, mas nenhuma parece se dar ao trabalho de evitar que esse tipo de infortúnio lhe caia.            Às vezes as crianças são fruto do amor da família, às vezes são meio para fazer aflorar o ódio que existe nela. E eu me pergunto se há solução para os problemas que estão sendo debatidos dentro da sala da promotora. Talvez sim; mas se isso tem qualquer relação com a criança que está agora abraçada com o Scooby, de perninha quebrada e com aspecto assustado, eu não sei. Não sei porque os desentendimentos entre mãe e tia podem até ter motivo, e portanto haver solução. Mas para o descaso, para a objetificação da criança... Eu não sei se há solução para isso.
   Todas as injustiças encontram seu caminho ao tribunal. Das maiores, que saem no jornal, às menores, que estão sem fome para o bolo.
   “ Tem mais brinquedo?”, ela pergunta, menos inibida.
   Uma pena que não tenha.