quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Sobre sonhos e lobos

Eu tive o sonho mais estranho esta noite.

Nele, era mais um dia normal na minha vida, e tudo começou quando eu resolvi sair de casa para cuidar de um assunto; e se não me ilude a memória, foi para comprar alguma coisa. E nesse início, como não depois, a minha casa ainda era de fato a minha casa. Lembro de pegar o carro e de estar atrás de um balcão, esperando receber o produto. Lembro também que, ao sair da loja, ocorreu-me realizar uma outra tarefa. Entrei no carro, dei partida no carro e saí na rua.

A partir daí, o sonho se torna um monte de imagens que se sobrepõe em alta velocidade, e mais transmitem sensações que propriamente elucidam qualquer coisa. Sinto que a realização da outra tarefa logo se tornou uma aventura que me fez percorrer os cantos mais recônditos de uma cidade sem fim. Viajei de ponta a ponta, conheci pessoas novas, fui de objetivo em objetivo; sem nunca voltar para casa. Incansavelmente me punha a procurar e a resolver todos os problemas que pudessem se pôr entre mim e meus objetivos, estendendo sempre mais uma viagem que se esticou de tal forma no meu peito que pareceu levar anos. Não mais tinha eu de comprar coisas, mas encontrar objetos, realizar trabalhos, atender favores, fornecer ajuda, pesquisar soluções, todo tipo de deveres que surgem regularmente no cotidiano de uma pessoa que busca desenvolvimento e crescimento pessoal.

No meu caminho, conheci várias pessoas diferentes. Não me é possível lembrar-me a fundo das características de nenhuma em específico, mas sei que algumas foram reaproveitadas pela minha mente da minha própria vida. Alguns rostos, embora embaralhados de forma a impossibilitar a minha lembrança clara, eu sinto que conheci de verdade, enquanto outros foram simplesmente inventados. Lembro de sentir, no entanto, ter me apegado a diversos desses rostos embaçados; alguns me ajudaram a resolver meus problemas, outros eu ajudei de alguma forma. Alguns por um tempo levei para rodar em meu próprio carro, uns por obrigação, outros por afeto mesmo. Sinto a alegria de conhecê-los e a tristeza por vê-los partir como se cada uma dessas ocasiões tivessem sido verídicas. Lembro também que cresci pessoalmente com a convivência que tive com cada um deles, nas dezenas que foram. O sonho foi evoluindo, durante essa viagem, em algo que nunca antes meu subconsciente conseguiu sintetizar, de modo que no final dela, e até agora enquanto escrevo este texto, meus sentimentos são afetados pela realidade de tudo aquilo.

Durante a viagem, além das pessoas que fui conhecendo, fui ganhando presentes e adquirindo itens que guardei no porta-malas do carro; como as conquistas que vamos acumulando durante nossas vidas. Quanto mais viajava, quanto mais cumpria meus objetivos, mais coisas tinha para guardar no porta-malas; testemunhas de meus sucessos. Aquilo, assim como a experiência que eu adquiria com as outras pessoas, enchia-me o peito de glórias. Eu enriqueci de todas as formas durante minha viagem...

Até que anoiteceu. No sonho, não lembro se foi a primeira noite que encontrei, ou se muitas outras se passaram ( o que seria mais lógico, já que para mim foram anos que se sucederam). Sei que foi a noite mais nítida de todas, para não dizer a única. Lembro de descer as escadas de uma casa num terreno deserto, com um prato de comida em minhas mãos. O prato estava protegido numa bandeja tampada, e a rua que me esperava ao pé da escada era iluminada apenas por um poste, e de todo modo solitária. Entrei no carro e segui para casa.
Minha casa não era mais a minha casa, mas uma espécie de escola, onde várias pessoas da minha idade moravam. Estacionei o carro, e única coisa que levei dele comigo foi a comida; parecia ser ela a culminação de todo o meu esforço, o objetivo maior e mais recompensador. Entrei pela porta da frente com uma alegria que não cabia no peito, levando a bandeja com minhas duas mãos, muito orgulhoso. No corredor de minha casa, que mais parecia com os largos e cheios corredores de uma escola, entretanto, fui encontrando colegas que me olhavam... feio. Todos passavam e me lançavam olhares enojados, irritados. Fui começando a sentir um aperto no estômago, ao invés de felicidade no peito. Logo senti minha expressão facial transformar-se numa clara indagativa. Queria saber por quê todos me tratavam com desdém e reprovação. Até porque grande parte dos que passavam eu havia conhecido na minha viagem, e por eles nutria muita consideração. Os corredores lotados de discórdia pareciam exageradamente longos, e ao final meu coração já batia acelerado e uma paranoia havia se apossado de mim.

Finalmente, após longo caminhar, cheguei no refeitório (sim, era um refeitório, com muitas daquelas mesas longas de praça-de-alimentação, cheia de cadeiras para acomodar centenas de pessoas). Logo na entrada, no entanto, fui abordado por uma figura de rosto fora de foco que finalmente me explicou o motivo de tanto ódio:
“No decorrer de sua viagem, Haroldo, você se utilizou de todas as pessoas com que teve contato; sempre de maneira egoística, impessoal, tratou de se aproveitar, de sugar o que elas tinham a oferecer de melhor, e não hesitou em chutá-las para fora de seu carro assim que se sentia completo e satisfeito. Você fez mal para absolutamente todas as pessoas com que teve contato, e elas não carregam senão sentimentos ruins sobre você.”

Aquela declaração doeu-me. Doeu-me ainda mais porque aquele rosto fora de foco tinha alguma espécie de carga emocional de grande efeito em mim. Aquelas palavras fizeram-me sentar e assistir uma segunda vez minha viagem, onde pude então reparar que de fato, muito embora no momento não tivesse sido capaz de perceber, eu tratava as pessoas como se objetos fossem, elaborados com o único propósito de satisfazer-me as necessidades. Reparei então a tristeza que lhes infligia com a minha partida, e a frieza com que nunca mais fazia questão delas ou coisa que o valha. E de repente, o refeitório estava vazio. Vazio como se nunca uma alma houvesse posto o pé lá. Afora eu, claro.

Lembro que o refeitório, suas mesas, cadeiras, paredes e tudo o mais, eram de cor predominantemente branca. A claridade era simplesmente elucidativa. Lembro-me então de, em silêncio, abrir minha bandeja com comida. A bandeja não me trazia mais nenhum contentamento; era um sabor amargo de decepção e angústia o daquela comida. Comi em silêncio, completamente sozinho e de cabeça baixa, como se nunca minha vida houvesse me trazido qualquer tipo de felicidade. Até que levantei a cabeça para encontrar à minha frente um grande lobo negro, como que saído do vazio, que se sentava à mesa como se gente fosse. Podia muito bem ser alguém fantasiado, sentado com as mãos à mesa, imóveis; só que era um lobo, com focinho, pelo farto e muito magro. Gostaria de poder recordar a cor de seus olhos mas sou completamente incapaz, portanto em minha memória seus olhos eram brancos como a sala ao redor. Ele me observava calmamente, e não demorou a falar. E o mais assustador de tudo era que, apesar do aspecto agourento, sinistro, sua voz era tranquila, racional e insanamente sensata:

    • Então, qual é afinal o gosto da comida de que agora desfrutas?

Acordei, mas o sonho me matou um pouquinho.