quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Terra do Nunca, Nunca na Terra

O cigarro em suas mãos diz muitas coisas. Mais até do que ela, que está silenciosa. O seu vestido é azul, cheio de brilhos (enegrecidos pela sujeira), sua renda toda bem cosida (rasgada e desgastada), seus sapatinhos de cristal (está faltando um, o outro está trincado), a parte frontal de seu vestido é uma agradável pintura da face de uma criança (só que o seu busto está rasgado, abrindo num grande decote, e seu vestido todo esticado e maltratado pelo tempo fez o sorriso da criança se entortar, pender e cair num expressão de tristeza). Ela está sentada num tronco morto, igual a todos os outros troncos mortos que temos ao redor, com suas perninhas jogadas displicentemente em todas as direções.

Estico-lhe um braço, e ela nota o isqueiro negro na extremidade que lhe é próxima. Seus belos olhos azuis fitam-me com profundidade, enquanto ela exita baixinho.

Com um movimento dos dedos, eu faço o fogo, e a luz me mostra detalhes não de todo agradáveis em sua face: a maquiagem borrada exalta as veredas de lágrimas por suas bochechas, e o brilho que enfeitava os lábios já minguou. Ela, depois de uma curta briga interna, resolve-se.

- Típico! - diz com um pouco de amargura. E num movimento rápido, encosta seu cigarro na minha chama, e assiste enquanto ele adquire brilho próprio. Então, com a velocidade de uma viciada contumaz, ela o leva à boca, numa boa tragada.

- O que aconteceu com suas asas, Fada Azul? - pergunto, não tão inocente enquanto guardo o isqueiro negro. Por algum motivo, essa pergunta faz todo o sentido.

Uma tragada precede sua resposta, enquanto ela empalidece e eu assisto uma longa subida e uma longa decida de seu peito - Caíram. - Seus olhos me evitam como o Diabo evita a cruz, parecendo relâmpagos azulados em suas órbitas, procurando um ponto fixo.

- Hm... Mas como?

Sua carinha suja se torce numa carranca, que nem por isso deixa de ser bela, enquanto ela me cospe sua resposta:- Caíram de caideza caída!

- Como poderiam suas asas cair?

Subitamente, sua expressão vaza numa de dor e angústia, com suas sobrancelhas quase se interceptando no topo da testa, mas só por um momento, pois logo ela se recupera - Caíram porque não eram mais necessárias, obviamente. - ela respondeu, escondendo-se atrás de uma expressão indiferente. Seus olhos ainda em outro lugar, como se nossa conversa fosse a coisa menos interessante daquele cenário estático. Mas então, algo subitamente veio à minha mente; uma idéia. Mas tentei afastá-la, incomodado.

- Mas ... - interrompi minha própria frase, quando me dei conta: - Uau! Neve!

De repente, desciam do céu aqueles flocos gelados que eu sempre tivera vontade de conhecer. Neve! Olhei ao redor, impressionado, observando enquanto os flocos cercavam-nos por completo. Um sorriso veio aos meus lábios; mas não por muito tempo.

- Eles caem que nem neve, mas eu não acho que sua origem seja tão nobre. - disse a Fada Azul, parecendo incomodada. Eu olhei então mais atentamente. Abri uma de minhas mãos para interromper o ciclo cadente de uma das partículas.

- Só não cometa o mesmo erro que eu.- interrompeu-me- De experimentá-los; com a boca. - disse a Fada. Franziu então o cenho, e sugou novamente o cigarro.

- Cinzas...?- espantei-me, analisando a partícula que havia aparado.

- Elas caem como neve. Só que a neve purifica, a fuligem simplesmente suja.

Olhando ao redor, com posse desses novos dados, pude finalmente compreender por quê tudo parecia sujo e mal-cuidado; que nem a Fada.

- De onde vêm? Estamos em perigo?- perguntei, olhando preocupado em todas as direções.

- Em perigo de que? - rebateu a Fada, entre baforadas, desinteressada como sempre.

- Oras! - o descaso existencial e sua alienaçã material começavam a me incomodar flagrantemente.- Perigo de morrermos queimados! Sabe? Fogo? Incêndio?

- Não se preocupe. A pior coisa que pode acontecer por aqui é continuar respirando.- disparou a triste Fada, erguendo uma sobrancelha em desgosto. Deu então uma longa tragada. Foi quando eu reparei que ela não liberava a fumaça de volta. - Quando se está em lugar nenhum, ser alguma coisa perde seu valor. Para não dizer seu sentido.

Logo as peças do quebra-cabeça se identificavam em minha mente, e eu começava a ver a grande imagem. À entender. Fui acometido por uma grande pena da pobre Fada. Meu próximo movimento foi para sentar-me ao seu lado. Não pude deixar de notar então seus cabelos loiros (sujos e bagunçados). Empelido pela emoção, tentei suprimir a austeridade do momento com um trocadilho.

- Mas diga, Fada Azul, o que aconteceu com o Pinóquio? - eu disse, sorrindo.

Uma baforada.- Virou um menino de verdade, oras. - ela disse, indiferente. Mas justo quando eu tentei prosseguir com o trocadilho, ela se completou:- E morreu. De câncer. Parece que nem tudo na vida são flores, né? Pena que o rapaz nunca compreendeu que isso aqui (fez um gesto indicando a própria carne) é um material mais vagabundo que a madeira que o compunha.

Dizer que a narração da Fada me deixou estarrecido e sem reação seria eufemismo. E por um momento ficamos em silêncio. Um silêncio tamanho que chegava a pesar no coração. De pronto, uma brisa gélida começou a nos açoitar. Vi a pobre Fada encolher-se dentro de seus trapos, em busca de calor, mas por inibição não me ofereci para ajudá-la. Indaguei se ela vivia daquele modo à muito tempo; quantas vezes o frio de rachar lhe fustigara o corpo sem que nada ela pudesse fazer. Se a sua personalidade era apenas a ponta do iceberg que era a sua sofrida existência.

- As suas asas. Você as arrancou....não?

A Fada meramente piscou, e seu peito pulou uma expiração. Ela pareceu parar por completo ; e então as palavras que lhe saíram da boca foram como programadas, uma gravação antiga, sem emoção e sem vida.

- Eu tentei arrancá-las. Tentei. Com minhas próprias mãos, mas não deu certo. Elas escapoliam de meu aperto, acho que por puro reflexo. Acho que simplesmente não é natural, sabe, arrancar um membro seu. Mas um par de pedras afiadas, são dificeis de achar por aqui, fizeram o trabalho. Primeiro tive que quebrar os ossos, sabe? Porque se não os ligamentos e os musculos teriam dado muito trabalho, e eu poderia sangrar até a morte. Não que eu tenha muitas razões para viver, não; o que falta é a coragem.- ela mostrou o cigarro- Não, o meu fim vai vir de outro jeito. Enfim, com a pedra mais afiada de que dispunha, deitei-me no chão, e com um braço dilacerei a asa do lado oposto durante o que pareceram horas. O sangue primeiro vinha aos poucos, e a ardência era enlouquecedora. Mas isso foi progressivamente mutando em um outro tipo de dor; uma pior. E então, a sensação de vazio. Troquei de mãos a pedra, e fiz o mesmo do outro lado. Doeu mais. Foi como uma soma de dores, na verdade. - eu reparei que o rosto da Fada estava úmido, e a maquiagem ficava mais e mais disforme. Ela começou a soluçar baixinho, de maneira comedida.- Logo, eu estava sem ambas as asas. Com o restinho de forças que me sobravam, então, eu tentei estancar o sangramento com pedaços do vestido. Depois eu desmaiei. Não sei por quanto tempo fiquei desacordada. Nunca dá pra saber, nessa porcaria de lugar.- disse ela, zangada, suas lágrimas tanto de angústia quanto de tristeza. Ela então deu uma longa tragada, e silenciou.

Eu fiquei digerindo, espantado, ultrajado, perturbado, as coisas que ela me disse. Sem saber muito bem o que falar ou fazer. Uma pergunta, no entanto, saltou de minha boca, estilhaçando o silêncio:

- Por que?

- Por causa de tudo. Do que elas representavam, do que elas me lembravam, do que elas me faziam sentir. De...tudo.

- E o que elas lhe faziam sentir?

O choro da Fada se pronunciou antes que ela pudesse responder, mas ela se manteve firme: - Saudades.

Essa resposta não podia senão transportar meus pensamentos à situações tão distantes e tão remotas, à considerações e suposições tão complexas, que eu comecei a me sentir tonto só em supô-las. Me senti também pesaroso e...e...infeliz.

Juntei minhas forças para mais uma pergunta:

- E o que você fez com suas asinhas, Fada Azul?

Uma grande tragada foi dada, e agora o cigarro estava perigosamente próximo do fim. Ela então esticou um dedo, apontando o céu.

- Queimei.

Um comentário:

  1. Faltam palavras positivas na minha verborragia e sobram pontos de interrogação. Que crônica visceral, com gosto de cinza, com um tom monótono como de um filme quieto sem trilha sonora( não estou dizendo que foi intediante!).
    Harold, sempre auspicioso e pragmático, isso aew champs, é nós que tá! /yo

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